A gnose atua sempre como uma subcorrente em relação ao pensamento hegemônico. Ela é o que se mantém oculto, no pólo dialético do ocultar-revelando e do revelar-ocultando, exigindo, desse modo, uma análise hermenêutica para o entendimento de seus pressupostos. Representa, assim, do ponto de vista da compreensão do homem e do mundo, a contracultura e as heresias em cada época, e possivelmente a semente do novo, do que está por vir.
A emergência de uma atitude gnóstica ocorre em relação às questões não respondidas, pelo paradigma hegemônico, e à perda do sentido da vida, com o desmoronamento dos valores, das culturas e instituições. Quando o paradigma já não é mais um referencial operante, quando se carecem de novos pressupostos e novas idéias; então, retoma-se o processo de conscientização para a subida em uma oitava superior, da qual o mito de Prometeu é uma metáfora.
A gnose pode manifestar-se na religião, na filosofia e na política (o mito do salvador da pátria = Hitler). A missão gnóstica é a de revelar o saber oculto, substituindo as trevas pela luz que amplie os níveis de consciência da humanidade. Foram gnoses religiosas: as de Alexandria, o cristianismo, o luteranismo, na atualidade os Brahma Kumaris etc. Nas gnoses filosóficas podem-se incluir o positivismo, o paradigma emergente, os estóicos, Hegel (e o Espírito alienado), Marx (e a dialética de exclusão entre opressores e oprimidos), Nietzshe (com a proclamação da morte de Deuse suas críticas ao racionalismo e ao cristianismo), Heidegger (e o Dasein), Jung (com seus arquétipos do inconsciente coletivo). Entre as gnoses políticas, o marxismo (em suas aplicações à praxis), Bakunin, Lênin, Sorel e o princípio do poder, o fascismo, enfim todas as “mystiques politiques” ou as “religiões políticas” etc.
O pressuposto metafísico da gnose institui o que está em cima como o que está embaixo; o que está dentro, como o que está fora: o microcosmo refletindo o macrocosmo, consoante a fórmula do CORPUS HERMETICUM. Trata-se, então, de estabelecer as correlações e analogias entre as duas realidades que, na verdade, expressam a mesma essência.
Do ponto de vista religioso, duas concepções se defrontam com dinâmicas bem diferentes: a religião como religare e como relegere - a primeira caracterizando o aspecto salvador da religião pela fé; a segunda, tentando promover a busca e o encontro com Deus, pelo conhecimento. Trata-se, nesta, do esforço libertador do autoconhecimento; naquela, do messianismo pela salvação coletiva através da fé. Confrontam-se, assim, as religiões oficiais e até de Estado e as religiões de mistérios, de sentido iniciático (os mistérios eleusinos, dionisíacos, órficos, na Grécia; o mitraico, adotado depois pelos militares de Roma; o culto praticado por escravos, o cristianismo em sua origem, o gênero apocalíptico, o maniqueísmo e outras).
Para o gnóstico não há questão proibida, tema tabu ou dogma, menos ainda a verdade revelada através de profetas ou oráculos. Assim, uma característica da gnose religiosa é a eliminação do intermediário autorizado (padre, ministro, pastor...) e a tentativa da experiência direta e, portanto, mística, de Deus. O pressuposto é o da imanência de Deus, habitando na alma humana, sendo dela o mais importante parceiro.
Na verdade o gnóstico já não é mais o buscador, aquele que está à procura das respostas: Ele já tem as respostas. Cristo disse: “Conhecei a verdade e Ela vos libertará!” Os gregos proclamavam: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás a Deus”.
A dicotomia entre essas duas concepções se concretizava, principalmente, pela existência de religiões oficiais ou de Estado versus as religiões de mistérios e o ritos de iniciação. Na verdade, a gnose é uma vivência mais que um simples conhecimento intelectual.
A grande questão, pois, colocada à indagação e ao coração do homem é a da origem da dor e do sofrimento do mundo. O próprio abandono do termo grego kosmos - que significa beleza - substituído pelo termo latino mundo, que era o buraco onde se jogavam os detritos na antiga Roma, é um poderoso indicador da radical mudança que se operara no inconsciente coletivo, na passagem do mundo pagão para o mundo cristão. O cristianismo fundou toda uma ética na base da dualidade entre corpo e alma, matéria e espírito, imanência e transcendência, anulando qualquer valor aos termos iniciais dos pares de opostos, tornando unilateral o desenvolvimento do espírito humano e, como adverte Jung, em certo sentido reprimiu seu lado sombrio, projetando-o em forças metafísicas, representantes do Mal.
E a queixa dos filhos de Raquel encontra eco em suas lamentações: “Quem nos jogou nas trevas” “Quem éramos nós?” “Onde estávamos?” “De onde fomos expulsos?” “Aonde nos precipitamos?” “De que temos de nos livrar para o retorno à nossa morada?” Estas são as eternas questões que todos os gnósticos se colocam, em qualquer época histórica, em qualquer latitude do Planeta.
E a resposta/explicação também é sempre a mesma: a verdadeira vida não é deste mundo, pertence aos mundos siderais - ao Paraíso, ao Cosmos, ao Nirvana, ao WU-CHI (não-sopro, vazio) etc. O mundo em que vivemos não passa de uma prisão para o espírito que vive o sentimento de ter sido expulso, de que está alienado, mas que experiencia a dialética dolorosa de querer fugir ao mundo e, ao mesmo tempo, dele tem medo de liberar-se.
Essa angústia ou leva o Homem ao desespero niilista, daquele que perdeu o contato com suas fontes superiores, ou força o caminho na busca do mito pessoal, daquele significado que torna toda vida digna de ser vivida e todo homem merecedor do respeito devido a seu ser consciente.
Inerente à essa última postura, coloca-se o mito da SALVAÇÃO, quer pelo Divino Mediador - Jesus, o Cristo - quer pela fé no encontro direto entre o Deus Transcendente e o Deus Imanente, a centelha de que todo homem é portador, e que estabelece o trânsito entre a dimensão temporal de nossa consciência corpórea e a eternidade, a dimensão própria do espírito.
As etapas da SALVAÇÃO passam por dois tipos de atitudes opostas: aquelas que se refugiam em práticas mágicas, revelando a crença egóica da possibilidade da interferência do Homem no Drama Cósmico; e aquelas que se referem ao êxtase místico, onde o abandono total do ego (o ascetismo), permite que o Self se manifeste, ativando a imago Dei, presente no recôndito da alma humana. Trata-se, portanto, de construir uma nova imagem do Homem...
Da mesma forma, do liberalismo ao indiferentismo ou ao ascetismo, a questão é sempre a de matar o homem velho, o mundo velho, de abandonar as velhas crenças e estruturas para se fazer nascer o homem novo, o mundo novo, perfazendo o caminho da agnóia (ou ignorância) à gnose (ou conhecimento). Este é o caminho da verdadeira SALVAÇÃO. Há, no entanto, pontos de vista divergentes, que não admitem a possibilidade da salvação, como os de Mani, concebendo uma luta cósmica infindável entre as forças da luz e das trevas, do bem e do mal, consagrando de vez um dualismo que até hoje se faz presente.
Como já dissemos, para o gnóstico não há pergunta proibida, não há tema tabu ou dogma, quando a civilização está em crise e o paradigma já não é mais um referencial. Nesses momentos surgirão vozes que falarão no deserto, mas que de qualquer forma indicarão o novo caminho e a boa nova. Assim foi com o ramo cristão do judaísmo, assim será na Nova Era que se avizinha, sedenta de novas sínteses, que derrubem os muros da incompreensão e coloquem as pontes da fraternidade, do amor e da paz. Até porque o século XXI será espiritual ou não será...
Urge um novo nível de consciência, a partir desse processo de conscientização individual e coletivo, que represente uma nova vinda de Prometeu com o fogo revivido do céu. Assim, a melhor postura de análise é a gnóstica, pois ela não se fecha em nenhum conhecimento, ou tradição; pelo contrário, busca sempre a revelação nas oitavas superiores, pois não se deixa levar pelas aparências do momento, nem pelas limitações pessoais. Lá onde o UM impera, o ensinamento flui sem reservas para todo aquele que ousar ouvir o coração do Eterno.
II - A GNOSE COMO ATITUDE ANTE A VIDA
Gnose, em grego, significa conhecimento e seu estudo como epistemologia ou teoria do conhecimento integra o campo da filosofia na atualidade. No presente texto, aludimos a uma concepção específica da gnose, cujas características passamos a enunciar.
O conhecimento ou a gnose surge como atitude ante a vida todas as vezes em que se carecem de novas estruturas intelectuais para compreender certas realidades. Quando novas questões são colocadas e novas respostas se tornam urgentes, homens e mulheres tentam a ultrapassagem do já constituído para instituir o novo mais abrangente, mais condizente.
Tanto movimentos espirituais, como reações de massa, podem significar que se está clamando por uma nova subida do nível de consciência coletiva, o que poderá ser constelado em um homem ou em grupo que afine seus ideais de vida, seus sonhos comuns.
E por que a atitude gnóstica tem este sabor de heresia (etimologicamente = aquele que pode escolher) e a de Alexandria foi assim efetivamente considerada? A resposta é simples, porque homens e mulheres, que ousam pensar e fazer de sua consciência o tribunal em que - como lembra Jung - se é ao mesmo tempo réu e juiz, tornam-se ameaça à ordem e ao poder constituído.
Do ponto de vista individual, quando se perde o sentido da vida, quando ruem os valores da moral convencional, quando as instituições já não mais atendem a seus objetivos, estabelece-se a busca. O mito da busca é a decorrência necessária do desconforto que sente o gnóstico diante da perda do paraíso pela queda ou exílio. E essa busca não tem apenas o sentido transcendente do misticismo religioso, ela também se manifesta no plano da matéria, como procura de um significado e de um entendimento para o Mal e para a Injustiça.
Mas não se trata apenas de novos referenciais teóricos: a gnose é sobretudo uma vivência, uma prática. O que caracteriza a vivência gnóstica é a percepção do mundo como algo estranho, sendo o homem um errante, à procura do retorno à sua verdadeira morada. Este é o sentido profundo da palavra ética em sua origem grega: hthos, isto é, a morada do homem. A gnose como atitude ante a vida deve ser utilizada não só em situações pessoais, mas em quaisquer eventos à nossa volta.
Sem dúvida uma questão instigante é saber se, em vez de ter prevalecido os cânones da Igreja Romana, o gnosticismo tivesse sobrevivido. De que forma isto teria afetado a cristandade e o Ocidente em geral?...
III - DA GNOSE AO GNOSTICISMO:
A gnose pode manifestar-se de modos diferentes, segundo a época em que emerge e as circunstâncias que lhe dão origem e significância. Assim, pode-se falar em gnoses pré-cristãs e pós-cristãs; em gnoses ascendentes e descendentes, intelectualistas ou pseudo-gnoses. Pensadores como Goethe, Marx, Nietzsche, Heidegger estruturaram sistemas gnósticos, tanto quanto Blavatski e Rudolf Steiner. Como sistema filosófico ou político, o gnosticimo aparece todas as vezes em que as circunstâncias retratam o esgotamento de uma dada situação.
Na história, os essênios entre os judeus, movimentos neo-pagãos, em Alexandria, novos mitos e até religiões políticas, a partir principalmente do Renascimento, surgiram, quer como parte do fenômeno das heresias, quer como novas interpretações da história do espírito humano.
Hoeller mostra que os essênios representavam, de fato, um judaísmo pré-cristão de caráter gnóstico, organizados em comunidades espalhadas, a partir da sede em Qumram, abarcando o Egito - Alexandria, portanto - toda a Judéia, atingindo Roma e a Ásia Menor. Tal organização era a matriz perfeita para abrigar o novo credo que se formava, sob a liderança de Jesus, provavelmente, o Mestre da Retidão, de que os essênios falavam (1990:47). Para maiores detalhes consultar OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO, de Laperrousaz, s/d.
A gnose, como gnosticismo cristão, ocorreu entre o séculos II a V d.C. Como maniqueismo, ela se revela em todas as visões de mundo que promovem o embate entre as forças da luz e a das trevas, entre o Bem e o Mal, em seu sentido metafísico e absoluto. Como alquimia, na Idade Média européia, debruçou-se sobre uma tarefa que era verdadeira reviravolta de 180o graus, em relação à visão cristã oficial: não era mais Deus a salvar o homem de seus pecados, mas o homem a resgatar Deus do abraço mortal com a matéria, através da Magna Opus. Como kaballah, a gnose era um conhecimento reservado a poucos iniciados nos mistérios da língua hebraica e de seus símbolos revelados metaforicamente no Antigo Testamento. Constitui seu aspecto místico.
É bem verdade que houve diversas manifestações de gnose, tornando difícil falar desse movimento como uma unidade. Podemos perceber uma gnose mágica associada ao nome de Simão, o Mago, que se fazia acompanhar de uma prostituta que acreditava ser a encarnação da divina Helena, de Tróia (citado nos ATOS DOS APÓSTOLOS, no NOVO TESTAMENTO); ao lado da gnose mística e de práticas pneumáticas ou mediúnicas (hoje campo de estudos da parapsicologia).
Várias seitas iniciáticas se constituem em outras tantas gnoses, a saber: o templarismo, o catarismo, a maçonaria, o rosacrucianismo, a teosofia, a antroposofia etc. Todas entendem a gnose como auto-iluminação.
No presente texto, nosso interesse central é o sistema filosófico que se expandiu em Alexandria - a cidade, segundo Jung, em que o Oriente e o Ocidente se encontram - conhecido como a gnose de Alexandria, movimento carismático dos primeiros tempos do cristianismo. Nela coexistiam alguns tipos de gnose: a gnose mágica ou mística, a filosófica; a ofita ou naassena; a ascética ou liberal. A gnose ofita ou naassena, com seus adoradores da serpente (vide a serpente como símbolo do Cristo, citado em JUNG, C.G. SÍMBOLOS DA TRANSFORMAÇÃO, 1989), considera-a o divino canal pelo qual a consciência manifestou-se ao Homem; ao lado de vertentes ascéticas e de moral rígida, celibatárias, com alimentação especial etc. (como a de Marcião) e liberais, em que os excessos eram permitidos, no pressuposto de que o que quer que acontecesse ao corpo não poderia, de forma alguma, afetar a alma.
IV - A GNOSE DE ALEXANDRIA:
Os principais representantes da gnose de Alexandria (séc. II a V d.C.) são Valentino, Basilides, Carpócrates e Marcião.. “Quem nos jogou nas trevas?” A grande questão, pois, colocada à indagação e ao coração do homem é a da origem da dor e do sofrimento do mundo.
A resposta era dada mediante inspirações literárias e míticas, das quais destacamos quatro mitos:
1) o mito do paraíso perdido (o inconsciente urobórico);
2) o mito da queda ou da exclusão (a queda angélica e a queda adâmica = paralelo ao conceito grego da hybris X metron = não o mal no sentido ético do termo. O abandono pela família, como início do processo de individuação);
3) o mito da busca (sensação de alienação e de ter sido expulso, o herói ou a alma enfrentando as dificuldades e a aventura da vida);
4) o mito do eterno retorno (o estranhamento e fuga deste mundo - introspecção necessária à individuação), a sensação de ser errante ou estar de passagem; a sensação do déja-vu (teoria da reminiscência de Platão: toda lembrança é uma recordação); a necessidade de retorno à origem e à verdadeira vida dos espaços siderais - Cosmos, Paraíso, Nirvana (o medo da volta).
Desse ponto de vista mítico, as almas mais puras guardam a lembrança de sua origem divina e a ela querem retornar. Marcião funda uma seita religiosa, com base em práticas ascéticas e moral rígida, pelo pressuposto de que o corpo devia tornar-se sagrado, por ser o templo do Espírito nele aprisionado.
A atitude gnóstica não reconhece um mundo que é uma prisão. O gnosticismo busca o reconhecimento do que éramos, do que fomos, de onde estávamos, de onde fomos expulsos, aonde nos precipitamos e do que temos de nos livrar e renascer pelo impulso salvador do espírito (pneuma): “Não se põe vinho novo em odre velho”...Mito de morte e renascimento...
Que ensinavam estes mestres? Que havia um Deus supremo, increado, que era o máximo de Unidade. Que Deus não havia criado o mundo, mas este havia sido emanado de sua Sophia, segundo um mito gnóstico, através de desdobramentos (emanações) numa série complexa de entidades intermediárias - espíritos inferiores - que terminariam, estes sim, por criar o mundo.
Assim, o desprezo dos gnósticos era pelo kosmos do Demiurgo e não pela Natureza, onde Deus habita. Cultivavam, pois, a idéia de um deus imanente (o Anthropos), idéia que foi incorporada pelos alquimistas como a lumen naturae (a luz da Natureza). Na psicologia analítica, representa os instintos e o inconsciente. Cumpria salvar o homem do mundo, que nem era um cosmos, nem criação de Deus, diferençando-se os gnósticos, tanto dos gregos como do judaísmo-cristão sobre a questão da origem do mundo.
Teoria da emanação antes que da criação, nela já há um primeiro confronto com o que viria a ser a ortodoxia apostólica e seus pressupostos de crença: DEUS, a CRIAÇÃO e a REVELAÇÃO, através de alguns intermediários autorizados, os primeiros dos quais naturalmente os apóstolos, entre eles os que viriam a compor os evangelhos canônicos.
Para Carpócrates as almas humanas seriam anteriores à produção do mundo, tendo vivido, portanto no seio da divindade e experimentado a máxima Unidade (influência da teoria platônica das formas puras). Basilides supõe que as entidades divinas, vivendo no Estereoma celeste, teriam engendrado o primeiro ARCONTE e suas principais entidades (os éons). As principais emanações do Absoluto seriam: Sofia ou o lado feminino e criador de Deus: a sabedoria divina (sophos = Sábio), seu amor e misericórdia como a redentora do homem; o Nous, a inteligência e a sabedoria divina que rege todos os processos do universo; o Logos, isto é, o dizer, o Verbo que, ao nomear, impregna o ente de significação; a Energueia, a energia criadora; a Dynamis, como a força, o movimento universal, a Aletheia, a verdade, a descoberta (fonte do Logos, como princípio constitutivo da coesão e da Vida) e a Phronesis, discernimento e inteligência prática responsável pelo mundo da manifestação. Elas seriam os arcontes ou regentes do mundo, seus primeiros éons.
Com a criação do mundo pelo Demiurgo (YALDABAOTH ou JAVÉ), diz a gnose mítica que Sofia, desejosa de conhecer todos os meandros do Pai, cai nos mundos inferiores da matéria, apaixona-se e é por ela abraçada, não podendo mais afastar-se do convívio dos homens, também eles decaídos.
Por esse mito - das centelhas de luz (espírito) presas na matéria - se configuraria a possibilidade do Absoluto de, ao contemplar o Abismo, ter se entristecido com o “Não-Ser”, tendo suas lágrimas derramadas se transformado em centelhas de luz que se aprisionaram à realidade física. A alma e o espírito do homem... E o Eterno Deus Altíssimo sonhou ainda por muito tempo. No sonho ele viu o mundo que criou potencialmente, se expressar ciclo cósmico após ciclo cósmico (éons). Quando acordou do sonho, o Altíssimo deu um grande sorriso e, voando como um pássaro, lançou-se no abismo da noite, repartindo-se em milhares de pedaços que cintilavam com tal esplendor espiritual, com tal intensidade, que ...Fez-se a luz!
Assim é que cada um de nós é uma partícula desta luz. A gnose mística sustenta ainda que é destino da humanidade descobrir sua unidade divina e reunir-se novamente, retornando ao lugar da queda, ao local onde feminino e masculino eram um só no Absoluto. A lenda ainda conta que para empreender feito de tal envergadura, o ser humano deverá encontrar embaixo, no elemento adâmico, a unidade perdida, para só então retornar ao Paraíso, coagulando-se com as milhares de miríades de si mesmo.
Sofia representará assim o arquétipo do amor divino pelos homens, a misericórdia de Deus pela criação, e seu retorno ao mundo divino expressa a exigência da redenção da humanidade. Enquanto aprisionada na matéria perdida entre os homens é a Sophia Achamot, aguardando sua redenção para voltar a ser a companheira de Deus, primícia de suas obras: a divina Sophia Shekiná.
Uma variante do mito diz que Deus, para criar o mundo, debruçou-se em uma janela e ficou longo tempo a sonhar. Era noite, o mais denso caos, e a sucessão de imagens passava pelos Pensamentos de Deus. Lá fora o negrume do abismo sem fim contrastava sobremaneira com os Pensamentos do Eterno. No seu sonho, Deus criava Adão, o homem universal à sua imagem refletida. Sonhou também que fez cair Adão em um profundo sono magnético, de modo que Adão adormeceu e o Ser Altíssimo tomou uma das imagens mentais com que este sonhava e revestiu de beleza e forma corporal a sua base. Depois consolidou a essência desse produto da imaginação que tinha extraído de Adão, fazendo dela sua esposa intelectual e lha trouxe. E o Eterno Deus Altíssimo sonhou ainda por muito tempo. No sonho ele viu o mundo que criou potencialmente, se expressar e manifestar. O final da lenda é misteriosa, pois termina com o Homem-Deus frente ao Superior Incógnito, um duplo seu: sua imagem e semelhança.
Compare-se com a teoria bíblica das quedas (angelical, de Samael, e humana, de Adão) opondo o problema do livre-arbítrio ao do destino, sem conseguir alcançar a noção de complementaridade entre os princípios, o que seria feito, do outro lado do mundo: na China taoista, com seus pares “yang/yin” e com uma ética que visava aproximar o jen tao (o tao do homem) ao ch’ien tao ( tao do Céu), tendo como modelo as leis naturais e cósmicas...
Assim, ao lado do Deus transcendente (ainda que escondido: Júpiter, Javé, Espírito Absoluto, Dialética Materialista), admitiam os gnósticos a imanência de Deus no coração do Homem, ou seja uma nova imagem do Homem, aceitando também que o Homem poderia vir a redimir o espírito, tanto quanto o Homem-Deus viera para redimir o Homem carnal. Nesse sentido - alquímico, por excelência - os gnósticos e depois os alquimistas farão a ponte entre o paganismo e o cristianismo, tanto quanto os essênios serão o elo entre o judaísmo e o cristianismo. Até chegar a Jung e sua contundente crítica ao cristianismo, em especial a relativa à transcendência de Deus, colocada como dogma de fé, e afastando a imagem divina da interioridade humana que, sem ela ressecou no materialismo vigente em nossa época (ver Dourley, J.P. - A DOENÇA QUE SOMOS NÓS, 1987).
A ação mítica de Lúcifer ou de Prometeu representa a possibilidade de subida do nível de consciência, graças ao impulso para a salvação que vem do espírito (pneuma) e, sobretudo, ao aspecto divino do feminino em seu afã de conhecer-se: Sofia, Lilith, Eva ou Pandora, por exemplo.
Podemos caracterizar, pois, a gnose de Alexandria como uma proposta de:
1) hierarquia entre os indivíduos (o homem hylético, o psíquico, o pneumático) versus ahierarquia eclesiástica, que separava o clero dos fiéis. Como se percebe, tal hierarquia se estabelece, consoante o desenvolvimento espiritual de cada um: os hyléticos, que vivem ao nível da matéria: os psíquicos, que se deixam levar por suas paixões, só se alçam ao anímico eos pneumáticos que alcançam o mundo espiritual propriamente dito. Em cada grau, no entanto,havia perfeita igualdade, sem distinção entre os sexos ou entre fiéis e sacerdotes. Não havia, pois, uma hierarquia eclesiástica no sentido restrito do termo.
2) ausência do intérprete autorizado.
3) uma metafísica das relações entre o Criador e a criatura através de quatro movimentos: a
emanação, a criação, a formação e a manifestação.
4) configurar o criador do mundo na figura do demiurgo (responsável pelo mal e pelo
sofrimento). Ficam, assim, recusadas as idéias do judaísmo e do maniqueismo sobre o livre-
arbítrio ou o destino como origem do mal .
5) partir da idéia de um Deus imanente em complementação à de um Deus transcendente.
6) uma missão do homem redimindo o espírito (Deus), contrária à tradição de um Homem-Deus
redimindo o homem carnal. Nesse sentido a Alquimia se revela como continuação do
gnosticismo.
7) opor a idéia messiânica de uma salvação coletiva ao esforço libertador do autoconhecimento individual e solitário (A verdade vos libertará...Conhece-te a ti mesmo e conhecerás a Deus...).
Obs. O mal para os gnósticos não é apenas uma categoria moral, a hybris grega oposta ao métron, nem deve ser atribuído às quedas luciferina ou adâmica, em função do livre-arbítrio. “À pergunta: por que o homem deseja o mal?” respondem com a idéia de destino, como isca, colocado pelas moiras, entidades que urdiam o destino das coisas, na mitologia grega.
V - INFLUÊNCIAS GNÓSTICAS NO PENSAMENTO DE JUNG:
Jung encontrou nos gnósticos verdadeiros amigos, que lhe permitiram refazer elos históricos. Vislumbrou ele uma linha de continuidade entre suas descobertas relativas ao inconsciente, principalmente ao inconsciente coletivo - que nos identifica enquanto espécie - e as intuições dos mestres de Alexandria que, a seu modo, mítico ou especulativo, também eles iam ao encontro do inconsciente, ou de sua projeções.
Por uns foi acusado de ser gnóstico (a pior das heresias para os cristãos ortodoxos); por outros, de agnóstico (pela recusa de assumir pressupostos metafísicos). Para Stephan Hoeller, Jung foi um gnóstico. Não só por sua atitude ante a vida, trazendo novos conceitos e dimensões para explicar o humano, como pelo fato de que buscou o gnosticismo de Alexandria, nos séc. II a IV, de nossa era, como fundamento para muitas de suas idéias. Para Jung. o processo de individuação permite o autoconhecimento e a autotranscendência. Contudo, Jung é considerado, entre outras razões, como agnóstico, por recusar a fé como fundante da experiência de Deus. E isto fica muito claro, em sua entrevista à BBC de Londres, quando indagado se acreditava em Deus, ele responde: “Eu não creio em: eu sei!”.
A obra indiscutivelmente gnóstica de Jung é um pequeno texto, escrito sob a forma de poema-metafórico, intitulado OS SETE SERMÕES AOS MORTOS que ele assina sob o pseudônimo de Basilides, homenagem ao grande filósofo de Alexandria. Esse texto surgiu em circunstâncias estranhas, em uma atmosfera pesada, sentida até por seus filhos, ainda pequenos: campainhas tocando, sem que ninguém estivesse batendo; sonhos perturbadores etc., até que Jung resolveu pegar da pena e começou a escrever...E escreveu sobre a vida e a morte, tal como sentida por um gnóstico...
No 1o Sermão, Jung faz uma espécie de cosmogonia, indicando a natureza do elemento primordial, o PLEROMA, segundo a terminologia gnóstica, isto é: o Nada ou Vazio primordial, que paradoxalmente, contém potencialmente Tudo ou a Plenitude. Trata-se de uma dialética de ambigüidade. O conceito de inconsciente coletivo pode ser entendido como o PLEROMA dos gnósticos, em nível psicológico individual. É infinito e incognoscível, é eterno, transcendental, incriado e intemporal. Nele os conteúdos são indiferenciados, e, portanto, incognoscíveis, no entanto, ele é, ao mesmo tempo, a fonte e matriz da consciência e de todos os seus c
Excelente texto!
olivia Mabel criou um tulpa depois da morte do filho!
A momentos que só um palavrão defini o quão profundo e esclarecedor foi um posto. Sensacional. Estou preste a criar 2 servidores, só que não. Vou criar um ratinho primeiro.
Eu sei que o post é antigo, mas queria dizer que adorei o texto!! Sobre esse exercício que citou, construto mental, teria algum livro ou outra fonte séria onde eu poderia saber mais sobre ele? Achei muito interessante, enquanto lia já comecei até a imaginar o animal.