
Antigamente, durante o processo de canonização pela Igreja Católica, havia um Promotor da Fé (Latim Promotor Fidei), designado pela própria Igreja, cuja função era encarar com ceticismo o candidato à canonização, procurando lacunas e falhas no processo (por exemplo, inconsistência nas provas dos supostos milagres, etc). Por exercer essa função, o Promotor Fidei era popularmente conhecido como "Advogado do Diabo" (Latim advocatus diaboli). Fonte : Wikipédia
É estranhamente paradoxal o fato que, numa época onde se consegue facilmente informações sobre qualquer assunto com um simples digitar de teclado, as pessoas estejam cada vez mais crédulas. Principalmente no meio magístico. Não sei se é porque agora as pessoas podem perguntar por aí sobre qualquer coisa e ter a sensação do “anonimato”, mas nunca vi tantos casos de hipocomágicos (https://www.specula.com.br/forum/reflexoes/o-magista-hipocondriaco-ou-hipocomagico) quanto tenho visto ultimamente ao passear por páginas e grupos de práticas magísticas. E parece não importar o quanto os mais experientes escrevam, as pessoas parecem simplesmente não ler nada e fazer perguntas para o autor do texto sobre coisas óbvias que estão sendo apresentadas no próprio texto. Pior, quando a explicação não condiz com o que eles acreditam ser o motivo da dúvida, sentem-se ofendidos pessoalmente pela explicação.
O problema é que as pessoas preferem a auto-ilusão a encarar a realidade. E para nós, praticantes da Grande Arte, auto-ilusão é uma das maiores sabotagens existentes. A consultora Elisabeth Cavalcante, em seu texto A Auto-Ilusão, escreve em seus dois primeiros parágrafos: “Um dos nossos maiores obstáculos para o nosso crescimento interior é a auto-ilusão.

É incrível a capacidade que temos de nos enganar, criar ilusões para tentar moldar as circunstâncias de acordo com nossos desejos.
Quando a realidade se apresenta de modo diverso do que gostaríamos, muitas vezes preferimos, como avestruzes, "enfiar" a cabeça na terra para não enxergá-la. É difícil ver frustradas nossas expectativas, por isso, optamos pela fantasia para afastar de nós a visão daquilo que não queremos enxergar”
O problema está no afã das pessoas, em sua busca pelos grandes efeitos sobrenaturais e vivências mágicas, não questionarem se o que nesse momento parece um grande efeito sobrenatural não teria alguma outra explicação mais provável, que talvez seja até mesmo correta. Aceitam sem questionar o ocorrido como sobrenatural, as alegações de um dito experiente magista como fatos incontestáveis, as revelações de ditos adivinhos como verdadeiras profecias celestinas. E sequer consideram a possibilidade de estarem sendo enganadas. E, quando alguém tenta mostrar outro ponto de vista, partem para a agressão, na tentativa desesperada de defender sua auto-ilusão.
Lembro-me de uma história ocorrida a bons anos passados, Eu estava recém chegado a uma cidade no interior. Era bem mais jovem, porém já tinha uma pequena, mas muito proveitosa, experiência no meio magístico. E como na época existia pouca literatura disponível sobre o assunto (a mais acessível era O Diário de uma Mago, de Paulo Coelho, e suas Práticas de RAM), as pessoas recorriam a qualquer coisa, ou pessoa, que tivesse um mínimo de domínio sobre o assunto para tentar aprender mais e buscar suas tão sonhadas iniciações. Eu não podia iniciar ninguém na época, eu mesmo não tinha Grau para isso, mas me dispus a ajudar as pessoas pelo menos a desenvolverem seus potenciais místicos, Nessa época, um dos que me procuraram tinha uma história “assombrosa” para contar (Na verdade depois surgiram várias, mas essa era a mais top). Dizia ele que certa vez estava numa espécie de república a noite, dormindo. E que seu corpo começou a levitar da cama. Ele dizia que não se lembrava, mas as pessoas que dividiam o quarto com ele viram e poderiam confirmar a história.

De cara estranhei, mas como sou curioso, certo dia fui com essa pessoa encontrar dois amigos que testemunharam o ocorrido. Eles de fato confirmaram cada detalhe do que era contado pelo “levitador”, e logo nos despedimos. Me chamou atenção dois fatos. Primeiro - apesar de alegar não lembrar de nada, quem realmente dominava e contava a história era a pessoa que me procurou. Segundo, mesmo enquanto confirmavam, as pessoas amigas tinham um ar engraçado. Quase cômico.
Alguns dias depois reencontrei um dos tais amigos, e entre uma conversa mole e outra finalmente descobri que a pessoa que me contou a história sempre vinha com histórias absurdas para eles nessa república. Sobre como já havia caído sobre o fogo e não se queimado. Sobre estourar lâmpadas na rua com o pensamento.

Sobre incorporar um espírito intitulado O Alemão e falar sobre desgraças futuras que aconteceriam com eles. E então esses amigos resolveram pregar uma peça e contar a tal história da levitação e ver até onde iria. A história que começou como um simples erguer-se a poucos centímetros do colchão tomou proporções dignas do filme O Exorcista, faltando apenas que um demônio começasse a matar as pessoas no quarto. E quem aumentava essas histórias era exatamente a pessoa que dizia sequer se lembrar dela.
Por meses eu fingi para esse amigo que não sabia da piada gerada às custas dele e tentava, aos poucos, demovê-lo dessas ideias de poderes paranormais dignos de X-Men e trazê-lo para luz dos fatos, mas o mesmo não apenas insistia, como as tais manifestações do Alemão chegaram a piorar.

Até que certo dia, numa festa de aniversário de familiares, alguns dos membros do círculo que havíamos criado para praticar exercícios herméticos foram à minha casa assustados, dizendo que o tal Alemão havia se manifestado e estava revelando destinos terríveis e maldições para os membros do círculo, e negava-se a deixar o corpo de seu possuído. Esse dia para mim foi a gota d’água. Deixei a festa e fui encontrar o “possuído”. Assim que cheguei disparei três frases em alemão. Ele congelou na mesma hora. Disse mais duas. Ele ficou sem saber como reagir.
Eu não falo alemão, porém, a músicas de tons góticos alemãs são as melhores, e as letras delas eu sabia. Meu objetivo era saber se essa pessoa (fã inveterada das boy bands que dominavam a época) entenderia o que eu estava falando (afinal, o espírito era Alemão, correto?). Por fim, diante dos assustados membros do Círculo, expliquei sobre animismo e mistificação. E o quanto isso era danoso para todos que fosse prosseguir no caminho mágico. A pessoa deixou o Círculo e hoje em dia não pratica mais nenhuma forma de Tradição Mágica, nem menciona mais o assunto. Mas tornou-se um bom artista e anda bem famosa com suas performances.
O que ocorreu com essa pessoa, e muitos que estão iniciando ou vivendo a prática mágica, é que não questionam em momento algum as coisas que acontecem em sua vida a partir de uma ótica mais racional. Ignoram que seus Diários Mágicos/Livros das Sombras servem para que eles analisem suas vivências e garimpem o que é real e o que pode ter sido só impressão. E aceitam como fatos coisas que performistas fazem dizendo ser Magia ou Manifestação do Oculto sem questionar por um momento se tudo não pode ser simplesmente um truque muito bem executado para angariar a atenção desejada.
Isso costuma acontecer mais com os praticantes solitários e grupos iniciantes do que com praticantes de grupos já estabelecidos. Via de regras, nos grupos estabelecidos (sérios) o Orientador/Zelador/ Guia/Mestre/Sacerdote/Professor costuma servir de Advogado do Diabo, obrigando seu pupilo a analisar mais racionalmente os fatos e verificar o que pode ser real do que pode ser fruto de auto-ilusão. Mas para o praticante solitário e os grupos iniciantes isso não ocorre. Então eles precisam assumir a função de Advogados do Diabo e aprenderem a se auto-questionar e também a questionar qualquer Autoridade que apresente algo para ele(s) como uma verdade absoluta. E sempre desconfie de qualquer pessoa que negue-se a dar uma resposta coerente, ou insista que determinadas respostas só serão dada depois de tal Grau de iniciação. O Grau pode te fazer ter uma melhor compreensão da resposta. Mas não é pré-requisito para que você não tenha sua pergunta respondida.
Não sejam vítimas dos véus de Maya apenas para sentirem-se importantes, irmão. Você pode até ser como aquele famoso rei e achar que está brilhando como o Sol em toda sua Glória, Poder e Majestade sobrenatural. Mas na realidade, o que o povo comentará à sua volta é O Rei está Nu.

Abraços fraternos