Entrevista com Tecnomago
Atualizado: 22 de fev. de 2022

Ele está arredio sentado me encarando enquanto fuma seu cigarro mentolado. Aos seus pés, o Pit Bull Ozzy deita obediente. Coloco o smartphone para gravar e arranjo minha munição de perguntas. Entrevisto hoje Kons Klößner, tecnomago de nacionalidades brasileira e alemã. Kons, como prefere ser chamado, nasceu e viveu grande parte da sua vida na Baviera. Estudou engenharia na Universidade Técnica de Munique (TUM). Mais tarde, tornou-se mestre de ciências das telecomunicações na mesma universidade. Por conta de sua experiência no submundo da tecnologia, ele prefere continuar longe dos holofotes e das redes sociais.
Lua Valentia: O que você se considera exatamente? Kons Klößner: Para os efeitos desta entrevista, você pode me chamar de tecnomago. Pessoalmente, eu não gosto de me limitar ao termo. Mas eu realmente sofro o mal da neofilia, tenho uma atração por tudo que é novidade. [Risos]. Valentia: Existe mesmo uma diferença entre tecnomagia e cyberxamanismo? Kons: É claro que sim! O xamanismo definitivamente está ligado à cultura indígena, especialmente do norte asiático. No Brasil, o equivalente ao xamã é o pajé, um guia espiritual indígena que também é médico e chefe da tribo. Muitos consideram o cyberxamã como a pessoa que leva o conhecimento indígena para as redes. Ou que estuda este conhecimento pela Internet e o distribui em centros urbanos. Então o cyberxamanismo é em parte a transferência do conhecimento antigo para o universo virtual e urbano. Naturalmente, acho este conceito um pouco fraco. Há também quem diga que cyberxamã é a pessoa que adquiriu alguma característica tida como artificial, como uma inteligência de um supercomputador, por exemplo. E que pode usar um ou outro aparato tecnológico em rituais tradicionais xamânicos. É claro que certos cyberxamãs realmente têm conhecimento sobre a estrutura das redes. Tem uma outra vertente que considera cyberxamã aquele que é nativo da Internet, quando a rede era praticamente inabitada. Também acho o conceito fraco. Há aquelas pessoas que se auto intitulam assim porque gostam de usar psicoativos de origem indígena, o rapé, por exemplo, enquanto se masturbam olhando GIF de sigilo piscando na tela do tablet. Cada um sabe o que faz, ou ao menos deveria. O meu ponto é: se você não tem contato com a cultura indígena e não é um pajé, não faz sentido se chamar de cyberpajé. É apenas uma falsa apropriação. No meu caso, eu sou um mago. Estou muito mais voltado para a cultura europeia, especialmente a alemã, mais especificamente a Baviera, na qual fui criado. Toda a minha formação ocultista é centrada na magia europeia, enquanto minha formação secular é na ciência, na técnica propriamente dita. A união da técnica secular com a magia europeia deu origem à tecnomagia. Por isso não me chamo de cyberxamã. Seria injusto com aqueles que de fato têm conhecimento xamânico. Valentia: Quando você começou a estudar ciência e magia? Quando viu que poderia mesclar os dois universos? Kons: O ocultismo é parte primordial para a minha família, já que meu pai frequenta a Escola Internacional da Rosa Cruz de Ouro no Zentrum München des Lectorium Rosicrucianum (LRC). Um dos primeiros livros ocultistas que eu li foi o manifesto Fama Fraternitatis. Apesar de toda parte cristã, devo dizer que os ensinamentos da LRC foram fundamentais para a minha formação. A parte chata eram as missas dominicais que minha mãe me forçava frequentar. Mas isso durou até meus onze anos. Além disso, meu irmão mais velho sempre se interessou por temas mais... interessantes. Aos doze, larguei o cristianismo completamente. Herdei dele a fascinação por Thelema, Kaosmagick e literatura fantástica de terror. Enquanto isso, cresci com meu pai completamente obcecado com os negócios, à frente da empresa da família no ramo da tecnologia. Então unir os dois universos foi apenas um caminho natural. Eu já era tecnomago antes de saber que o termo sequer existia.
Valentia: Você cresceu numa casa de classe alta, então imagino que deva ter tido muitos privilégios... Kons: Sim, Munique é uma cidade de vanguarda e representa muito bem essa fusão. É uma cidade em que ciência e cultura se harmonizam completamente. Não existe a divisão entre exatas e humanas. Todas as áreas fazem parte do conhecimento humano e devem ser aproveitadas. Também é uma cidade próxima dos alpes, com maiores horas de sol. Cresci cercado de montanhas, lagos, ar puro e água doce. Não tive muito com o que me preocupar, eu apenas me joguei nos estudos, o que era esperado de mim. Minha família era bastante rígida neste aspecto.
Valentia: Qual foi sua primeira experiência com tecnomagia? Kons: Bom, é difícil precisar. O primeiro filme do Star Wars foi lançado um ano após meu nascimento, então eu estava fadado a crescer como um completo geek. Era o estímulo que eu precisava. Mas a primeira experiência marcante... Quando eu tinha cerca de 10 anos, meu pai comprou para meu irmão um RB Robot RB5X, que lembra um pouco o R2-D2, o que era um presente fabuloso! Eu acabei me interessando muito mais em programar que meu irmão. Ele corria atrás das garotas e eu corria para meu quarto. Aprendi Tiny BASIC antes de aprender inglês e roubei o robô para mim! Transformei o robô numa espécie de servidor, mesmo sem ter ciência do conceito. Ele se chama Hummel, por causa daqueles bonecos... ah, isso não é da sua época. Mas você gosta de coisas vintage, né? Minha mãe sempre colecionava esses bonequinhos nesse estilo, então me apeguei ao conceito. O fato é: Hummel se tornou uma entidade parte da família. Acho que foi a experiência mais marcante da minha infância. E ele funciona até hoje, está lá com a minha filha.
Valentia: Nossa, um robô servidor nos anos 80? Kons: Risos. Muita gente acha que tecnologia de ponta só existiu a partir dos anos 90! Mas não, eu tive o privilégio de crescer numa casa mais tecnológica que muitas do atual milênio.
Valentia: Você hoje faz parte de uma ordem baseada em Thelema. Tecnomagia geralmente é conhecida como uma vertente da Kaosmagick. Você poderia finalmente me explicar como a Ordem, vamos chamá-la assim, abarca a tecnomagia a ponto de usar um sigilo tecnológico contido em todos os computadores como signo principal? Kons: Podemos nos focar na minha vida e não na Ordem?
Valentia: Apenas responda. A pergunta não tem nada demais. Kons [suspira fundo] Vamos lá. O signo ao qual você se refere [diz apontando para meu colar] não é o principal da Ordem, apenas remete ao braço tecnológico dela. Em termos gerais, a resposta é bem simples: nós nos adaptamos ao tempo e pensamos estrategicamente em como nos firmar nele. Somos um corpo unificado. Já existíamos antes de Aleister Crowley. Sua influência é inegável, mas não a única.
Valentia: E quão importante é a tecnomagia para a Ordem? Kons: Hoje em dia é essencial para todos os nichos e projetos. Qualquer ordem séria deve parar de olhar tecnologia com desprezo.
Valentia: Como uma pessoa deve se iniciar na tecnomagia? Kons: Minha formação ocultista não foi um caminho de emojis coloridos e lives no Facebook. É isso que eu quero passar para você como minha rebelde aprendiz. A formação do ocultista sério deve ser traçada com base em três esferas: a do corpo, do intelecto e do espírito. O bom ocultista lê cerca de pelo menos um livro sobre o assunto de seu interesse por mês. O ocultista exemplar se exercita, pratica artes marciais, tem uma alimentação equilibrada, pratica exercícios de concentração, visualização e meditação diariamente. Estuda seus assuntos de interesse com afinco necessário para sua evolução. Você precisa de uma disciplina bem traçada. Um corpo fortificado e uma mente afiada é o cenário perfeito para trabalhar o espírito. Não existe fórmula fácil e automática. Para ser aceito no primeiro grau da Ordem, levei o mesmo tempo que um seminarista levaria, com o triplo de trabalho. Naturalmente, uma formação secular na área de tecnologia ajuda bastante.
Valentia: Este é o problema. Eu, por exemplo, não tenho talento algum para programação, robótica ou qualquer coisa similar. Kons: Bom, eu diria que o ocultista exemplar também tem talento e desenvolve seu lado artístico... o que não é meu caso. Sou um dançarino medíocre, não sei tocar nenhum instrumento e você já riu de uma tentativa fracassada de poema meu. Nem tudo é perfeito.
Valentia: Mas não é mais fácil escrever um poema do que aprender uma linguagem nova de programação? Kons: Aí é que está, dependendo do ponto de vista, qualquer porcaria pode ser arte se estiver bem embalada. Já quando se trata de exatas, ou você sabe ou não. Ou funciona ou não.
Valentia: Isso não é justo... Kons: Nunca disse que seria. Mas tudo depende de dedicação. Você não precisa ser um hacker e enviar uma maldição condensada num vírus que você programou para seu alvo...
Valentia: Oh, mas isso é brilhante. Kons: Sim, e não seria a primeira vez [ele diz piscando para mim].