Jornada ao "Outro Mundo" Celta
Os veios de água e principalmente os mares sempre foram e ainda são considerados um portal para o Outro Mundo das religiões indo-européias. Não só as águas, mas outros locais considerados como limites entre dois momentos ou lugares, como por exemplo, crepúsculo ou aurora, e também locais como beira de rios (novamente a água).
O Outro Mundo dos Irlandeses costuma ser um local onde a doença e a morte não existem; são lugares de beleza, juventude e verão eternos, ilhas situadas em algum lugar à Oeste da Irlanda. Geralmente para atingi-los são necessários um convite de algum ser que venha de lá e é a partir daí feita uma longa e penosa jornada.
Em aventuras e viagens celtas que tratam sobre incursões marítimas, vemos algumas vezes, falar sobre o “Mar Oeste”, que seria onde os antepassados, Deuses e outros seres encantados fariam sua morada. Aliás, se esta informação está correta (e penso que está, pois na viagem que vou falar mais adiante é citado o oeste), ela é compatível com muitas outras formas de religiosidade que tratam o oeste como o lar dos espíritos, dos antepassados e do Outro Mundo.

Naturalmente que as águas e sua porta para o Outro Mundo possuem seus guardiões, que muitas vezes são retratados na forma de monstros ou mulheres horrendas (ou não, se considerarmos Manannan como um guardião na viagem em questão...).
Temos ainda outros itens associados ao Outro Mundo, como a cor branca e a presença de maçãs, que é considerada um fruto do Outro Mundo. Vemos também como algo que marca uma visita do Outro Mundo, a música (como na viagem abaixo).
Outra coisa comum é haver um ser que incita ou convida um herói mortal para ir ao Outro Mundo. Aqui muitas vezes acontece que o tempo de lá e o de cá são diferentes, e o viajante descobre que há uma espécie de distorção temporal: ele passou muitos anos ou mesmo séculos por lá, tanto que muitas vezes já virou até lenda, mas lá, muitas vezes, foram questão de dias e/ou meses que ele pensa ter vivido...
Dentro destas “visitas” para o Outro Lado, temos duas categorias dentro da literatura irlandesa que se destacam: as Imramma e as Echtra.
A palavra Echtra significaria algo como aventura, enquanto Imram (plural Imrama), significaria viagem. Algumas fontes pesquisadas colocam que Imram não significaria necessariamente viagem, mas sim, a ação de remar intensamente, uma remação forte (Bellouesus).
Abaixo falaremos da Viagem de Bran Mac Febal, ou Imram Brain Maic Febail. O texto dessa viagem pertence ao período gaélico (séc. VI à X), tendo sido provavelmente composto no século VII. Nessa história, Bran, filho de Febal, após cair em sono profundo por ação de uma música e acordar tendo perto de si um ramo de prata com flores brancas, é incitado por uma mulher misteriosa a realizar uma viagem ao Outro Mundo, após ouvir ela cantar sobre todas as maravilhas que ele encontraria por lá.
Logo no início, podemos ver marcadamente que essa mulher é um ser encantado, pois coloca Bran sob uma espécie de encanto utilizando a música, sono este do qual ele volta com o ramo, que é prateado e com flores brancas (cor branca - uma alusão ao Outro Mundo. Mais adiante no conto novamente fala-se em flores brancas com o a mesma intenção).
Na primeira estrofe cantada pela mulher de terras desconhecidas, temos uma alusão à macieira, árvore que dá o fruto considerado do Outro Mundo, a maçã (lembrando que Avalon era considerada a Terra das Maçãs). Nas próximas estrofes, ela segue falando de uma ilha distante, onde temos música doce, flores, jogos e toda uma outra sorte de maravilhas. Ela segue afirmando que lá “são ignorados o lamento ou a traição”, segue contando que o local é “ sem mágoa, tristeza, sem morte, sem qualquer doença, sem debilidade”. Logo em seguida ela fala de outro aspecto que nos remete ao Outro Mundo, a bruma: “incomparável é a sua bruma”.
Em seguida, ela fala de um homem, que virá com sua expedição, um homem brilhante que agitaria o oceano até virar sangue (seria isso um deus ou a própria expedição de Bran?).
Temos nossa referência ao Oeste como a provável localização das ilhas e terras do Outro Mundo nesta estrofe:
“Há três vezes cinqüenta ilhas distantes no oceano a oeste de nós; maiores do que Éire duas vezes ou três é cada uma delas.

Depois, ela segue falando em um grande nascimento, filho de uma mulher cujo companheiro não seria conhecido, que, governaria o céu e o mar e que não seria bom incorrer ou cair em sua ira. Esse indivíduo teria feito os céus e purificaria as pessoas sob a água e curaria suas doenças. Não sei, mas isso me parece uma bela influência cristã...
O convite da mulher desconhecida vem na última estrofe que ela cantou:
“Não caias num leito de indolência, não permitas que a intoxicação te sobrepuje, começa uma jornada pelo claro mar se porventura desejares alcançar a Terra das Mulheres.”
Depois disso, Bran sai para o mar com um número de homens em três companhias de nove. O nove é um número bastante significativo para os celtas.
Ao sair para sua viagem, logo Bran encontra Manannan, filho de Lir, que lhe canta mais estrofes e afirma que um filho lhe nasceria, Mongan, filho de Fiachna (será este o grande nascimento dito pela mulher misteriosa?)
Manannan, filho de Lir, assim como a mulher misteriosa, segue cantando as belezas de sua terra: cavalos marinhos resplendem no verão, rios que vertem torrentes de mel e uma terra que não é acidentada. Para eles, em sua terra, não há fraqueza, velhice ou pecados.
Estava tudo indo muito bem, quando de repente vem de novo (como nas estrofes cantadas pela mulher desconhecida), na minha opinião, traços marcantes de influências cristãs, juntamente com uma quebra na alegria e felicidades eternas que vinham imperando nas estrofes anteriores:
“Um mau dia em que a Serpente chegou ao pai em sua cidade! Ela perverteu os tempos neste mundo, assim veio a dissolução, que não era original.”
Logo depois ele segue falando dele mesmo e de seus descendentes, novamente deixando dúvidas. Como perdão da comparação, parece como se fosse um CD com uma música bonita e agradável tocando e de repente tem um risco no meio (a parte dos pecados e castigos e tudo mais) que dá um barulho e aí a música agradável volta...
Na sua última estrofe, Manannan também incita Bran a viajar para a Terra das Mulheres, que deverá alcançar antes do ocaso.
Em seguida, Bran encontra uma ilha, a Ilha da Alegria, onde as pessoas ficam rindo sem parar, ali desce um dos seus homens, que também junta-se aos que já estavam rindo. Ele segue para a ilha seguinte, a Terra das Mulheres, onde é convidado a descer e como manifestou dúvida, acabou sendo seu barco puxado pela líder até o porto através de um novelo que ela jogou nele e que grudou na sua mão.
Ali eles acabaram descendo e muito tempo se passou (muito mais do que pareceu à eles – o tempo corre diferente no outro mundo, como já comentado), haviam camas que os esperavam e os pratos nunca ficavam vazios.
No entanto, a saudade da família veio bater em um dos homens de Bran, Nechtan, filho de Collbran. Eles decidiram seguir de volta para seu povo, tendo sido alertados pela líder da Terra das Mulheres que a volta deles traria arrependimento e que nenhum deles deveria tocar o solo; deveriam pegar seu companheiro antes de voltar. Nechtan não seguiu essa recomendação, desceu à terra na chegada deles e acabou virando pó. Bran e os demais contaram aos que ali se aglomeravam suas aventuras até aquele momento, sendo suas outras viagens depois desta, desconhecidas (já que os demais não desembarcaram e optaram por seguir viagem.).
Como podemos ver, a Viagem de Bran Mac Febal nos traz todos os elementos das Imramma e suas viagens e contatos com os seres encantados e as maravilhas do Outro Mundo dos irlandeses.
Leia a viagem completa aqui: https://bellodunon.com/?s=bran+mac+febal