top of page

A Fé no Caos: Contra os Prisioneiros da suposta Verdade

Atualizado: 22 de fev. de 2022



Acho bastante interessante ( e assustador!) observar a forma como certos comportamentos doutrinadores se desenvolvem mesmo em grupos que tratam de temas de ocultismo. Onde deveria haver incentivo a liberdade de expressão, o apoio e a proteção à diferença, ocorre o linchamento público do que é diferente e a depreciação de qualquer forma de pensamento que não se acomode ao que é "normal" e esperado. Me assusta ver isso em ambientes onde deveria existir o incentivo à experimentação e ao que é novo, tão importante para a emancipação dos indivíduos como pesquisadores de si mesmos.

A fé, em uma definição geral, pode ser dita como um dos aspectos fundamentais da humanidade, tanto como motor de ações individuais, que podem alterar a vida dos indivíduos em particular, quanto como motores da própria história, alterando o rumo de civilizações inteiras. E o que dizer da relação entre crença e fé, seria possível resumir esta relação em apenas um cânone mágico? Apenas por essas questões, essa relação já nos encaminha para um horizonte de discussão praticamente infinito. Limitar as manifestações da crença e da fé ao limite de um grupo de "verdades" é o mesmo que destruir um amplo horizonte de manifestações possíveis deste aspecto da existência humana. A crença só pode ser limitada pelo intelecto, e a fé só pode ser limitada pela vontade; em outras palavras, quem limita tais instâncias é o espírito humano, fonte de toda magia, ilimitado e infinito em suas possibilidades.

Costumo entender a fé, a partir de meu ponto de vista caoísta, como uma parte obrigatória de tudo o que está contido na efetivação de qualquer ação praticada por um indivíduo, seja ela mágica ou não. Tudo envolve uma dose de magia, até o que você faz contra si mesmo. Para qualquer ação realizada, é possível dizer que uma parte do direcionamento não está embasada em qualquer conhecimento que se possa ter adquirido, ou em qualquer outra instância interna ou externa que não seja a própria vontade. Há uma dimensão onde apenas a intenção pura é capaz de mover, e nisso está implicada a presença de uma vontade que se sobrepõe a qualquer mediação, a qualquer desejo intermediário que se coloque frente ao meu verdadeiro objeto de desejo. Qualquer escolha pressupõe essa dimensão, o que significa dizer que, mesmo as escolhas contraditórias ou errôneas, estão completamente carregadas de intenção, ainda que obscurecidas pelas nuvens da confusão dos desejos conflituosos. O que estou dizendo é que você coloca algo de si em tudo que faz. Tudo que chega até você é internalizado e depois devolvido, e volta ao mundo acrescido de uma parte sua. A crença, que está diretamente associada a isso, amplia infinitamente o leque de possibilidades de tudo aquilo que está associado ao que chamamos de fé.

É muito evidente, a partir da observação dos nichos que se formam atualmente na internet, que a crença tem sido utilizada como uma das ferramentas básicas na condução dos indivíduos, utilizando a fé como impulso motor. Também não é novidade que esse uso tem sido aplicado, desde a antiguidade, para atingir elevados patamares de adesão popular. Eu nem vou falar de fake news ou coisas do gênero, prefiro pensar em coisas mais lúdicas que, muitas vezes, não são tratadas como algo de natureza religiosa, mas que acabam por englobar todo o horizonte da crença em sua relação com a fé. Um sujeito que é viciado em uma narrativa literária, como Senhor dos Anéis, Harry Potter, ou mesmo Star Wars, pode, muitas vezes, apresentar um comportamento defensivo que se assemelha muito ao que é manifesto em religiões mais radicalmente doutrinárias. Isso tudo parece apontar com muita clareza para o seguinte: o que interessa é para onde sua energia está sendo direcionada, e o conteúdo de tais premissas mentais, ou seja, as sentenças fundamentais que regulam a crença constituída em sua mente, não interessam. Conte uma história mil vezes, até que ela se torne verdadeira. O que é uma mitologia, do ponto de vista de sua adesão popular? Trata-se de um conjunto de histórias, relatos, narrativas, repetidas exaustivamente ao longo de décadas, séculos, até o ponto em que se configuram como moduladores de comportamentos, de costumes e, principalmente, de métricas de pensamento que fornecem premissas mentais, e orientam pensamentos individuais em direções específicas, muitas vezes, em sentidos que interessam a um coletivo, ou a um grupo que se pretenda uma totalidade.

O que seria uma métrica de pensamento? Antes de mais nada, a primeira coisa sobre nós que pode ser imediatamente identificada sobre nós, reside em nossa estrutura corpórea. Somos animais. Como tais, é exigida de nós a realização de uma série de tarefas obrigatórias (comer, dormir, ir ao banheiro, etc), sem as quais a vida cessa. Para além disso, mas ainda em associação, esse leque de atividades se expande ao horizonte das necessidades mentais, a fé sendo uma delas. Onde eu quero chegar com isso? A fé, utilizando uma definição mais genérica do termo, poderia ser postulada como aquele princípio de movimento, o pontapé que faz o indivíduo sair da cama todos os dias e tocar a vida. Mas não estou aqui me limitando a falar sobre a fé em seu sentido mais imediatamente religioso, associado a crença em um deus que conduz, determina ou julga todas as suas ações e, por isso, é melhor você ser uma pessoa boazinha para não se dar mal.

Como eu disse, não estou falando disso, mas sim, pensando em relações mais simples,mas que também dependem de certa "fé" como motor. Você acorda todos os dias e vai trabalhar por que precisa pagar as contas, precisa comprar um carro, uma casa, em última instância, precisa realizar seus sonhos, sejam eles quais forem. E para fazer isso você usa seu "maquinário", tanto corporal, quanto mental, a fé inclusa nisso. Neste sentido, você acredita naquilo que deseja, ou ainda, naquilo que considera como sendo capaz de sustentar o movimento realizado por seu corpo e sua consciência em direção àquilo em que acredita, aquilo no qual sua fé foi depositada. Obviamente, isso foi algo que você construiu para si mesmo, e pode tanto levá-lo ao cume do sucesso, quanto pode afundá-lo no poço mais profundo da miséria e da auto sabotagem. Vamos pegar agora uma pinça e prender exatamente este ponto, pois é aí que mora a magia. Acredito que não preciso ficar explicando que um intento mágico, ou um direcionamento da vontade na produção do intento, tenha relação direta com a sustentação de um estado de "fé" que mantenha esse intento, por assim dizer, "de pé", no interior de sua cabeça. Para um ato mágico funcionar, acima de tudo, é necessário acreditar nele.

Pouco importa para onde você vai direcionar sua fé. Se você vai acionar algo relacionado a uma divindade ancestral, ou se vai rezar para o mickey mouse, pouco importa, desde que isso faça sentido na sua cabeça e a intenção mágica seja corretamente levantada. Longe de querer propor uma relativização radical de toda a prática mágica, estou apenas indicando aqui que o ato de magia é praticado pelo magista, e não pela divindade escolhida. Mas isso tudo, é claro, está sendo colocado quando estamos considerando a liberdade de criação contida em uma compreensão caoísta do horizonte das práticas. Em certos casos, alguns sistemas mágicos vão exigir apenas obediência e submissão ao paradigma, nada contra isso, cada um é livre para escolher o que quiser para si. Outrossim, um salto de fé, a entrega no horizonte da crença, configura-se como uma ferramenta bastante poderosa a ser utilizada pelo magista no sentido de alcançar seus intentos, e não considero ser possível limitar isso a um conjunto de crenças específicas determinadas por sua suposta validade em relação a outras; pelo contrário, considero que todas as crenças, quando corretamente associadas a um intento mágico, funcionam perfeitamente. Tudo funciona, mas nada é tão suficiente ao ponto de eliminar a necessidade de ir além.

Além disso, os mais puristas já podem ficar com seus cabelos arrepiados, pois não há como escapar do horizonte interpretativo no que tange ao domínio religioso. Nem mesmo as mais anímicas manifestações religiosas, como adoração a rochas, trovões e fogueiras, praticadas de forma recorrente por uma humanidade ainda primitiva, podem ser consideradas puras. Mesmo neste cenário, o objeto da fé era algo movido por uma interpretação do fenômeno natural. E não se trata de uma descrença na efetividade da magia praticada por povos orientados por essa forma de animismo, pois creio muito que alguns são capazes de fazer, com paus e pedras, o que outros não conseguem fazer com ouro e diamantes.

Neste sentido, é possível dizer que a melhor religião é aquela que você mesmo pode criar para si. E também é muito importante ressaltar que, embora a frase acima possa estar carregada com certo grau de radicalismo, é possível sempre notar que a relação estabelecida por qualquer participante de uma religião é sempre, em diversos sentidos, uma relação criadora de algo novo. Por mais que um paradigma religioso possa ser o mesmo para todo um conjunto de fiéis, a crença associada a ele por cada indivíduo vai direcionar a fé para um local específico. Em outras palavras, quando um indivíduo faz adesão a alguma forma de religião, o que ele faz é confrontar esse conjunto de regras com suas crenças individuais, formando novas premissas que podem ou não serem motores para atos de fé. Ou seja, a religião escolhida é também "construída" no interior da cabeça de cada indivíduo, que sempre vai colocar algo de si mesmo naquilo em que acredita. Os pretensos detentores da verdade, não estão mais que preenchidos de si mesmos, ao ponto de não compreenderem sem distorção o que lhes surge a partir do universo, enxergam a si mesmos em todas as coisas, quando deveriam tentar enxergar todas as coisas em si mesmos.



Choyofaque!!


Modo

© Copyright
bottom of page