Baphomet e Caos - Ainda sobre a dualidade
Atualizado: 23 de mar. de 2021

A história que circunda a figura de Baphomet é completamente multifacetada. A imagem fixada por Éliphas Lévi, embora famosa, é apenas um dos modos possíveis de realizar sua contemplação. Também devo dizer que não estou sozinho nesse texto. Muito do que digo aqui é fruto de uma reflexão direta sobre o que foi investigado por J. Vayne e N. Wyrd em seu livro (O Livro de Baphomet), que considero bastante significativo para uma compreensão caoísta dessa divindade. Além disso, também recorri à sessão do Psiconauta de P. Carroll sobre Baphomet. Este ensaio não tem a pretensão de analisar exaustivamente o tema (que é gigantesco), mas apenas traçar um certo perfil do modo como a MDC pode orientar sua percepção dessa entidade.
Baphomet e Caos - Ainda sobre a dualidade
A entropia é um movimento obrigatório de todos os seres que estão submetidos à dualidade. O caos, que põe tudo em movimento por meio de sua força implacável, permite, por assim dizer, pequenos relances de permanência entre uma reviravolta e outra. Tais momentos são o que conhecemos como existência (80 anos não significam nada para o universo). No entanto, é preciso perguntar o seguinte: Que força é essa que parece se relacionar com todos as viventes que bravamente tentam resistir à entropia?
Uma pista pode ser obtida a partir da compreensão de uma característica intrínseca da existência dos seres vivos, que se tornaram cada vez mais complexos, atrasando biologicamente seu encontro com o derradeiro fim. Doença, velhice e morte, podem ser ditos, do ponto de vista ontológico, como avanços em direção a entropia. Nem é preciso dizer quem ganha essa luta, né?! A entropia é implacável. É possível dizer que cada existência, cada vida, se sustenta apenas durante o período em que a engenhosidade de sua estrutura interna foi capaz de manifestar o Kia. De um bando de minúsculas borboletas caóticas batendo as asas no Kia primordial, surgimos nós. (Vayne, Wyrd - p. 137)
Na MDC é possível entender a evolução dos seres desta maneira. Certa aleatoriedade e assimetria, associadas a uma sistemática progressão da união entre as estruturas vivas, fizeram da complexidade o critério da permanência, ao ponto em que as estruturas evoluíssem para certa consciência da entropia (nós!). É importante considerar o termo consciência aqui, pois todos os viventes compartilham, em algum nível, de certa compreensão da entropia. Animais e plantas possuem mecanismos de manutenção de suas próprias existências, mecanismos de defesa, etc. Se bem flexionado, podemos dizer que isso imprime certo nível de consciência em tudo o que podemos chamar de vivo. No entanto, o que estou querendo apontar aqui é algo mais complexo, que, embora inclua todos os viventes, parece exigir certa possibilidade de uma consciência mais complexa para tocar as cordas do éter intencionalmente, como faz o magista.
Há uma parte do Caos que tem relevância mais ou menos direta para o magista. É o espírito da energia vital do nosso planeta. Todos os seres vivos possuem em si uma certa qualidade adicional que os separa da matéria inorgânica. Os xamãs da antiguidade representavam essa força como o Deus Cornudo. Em tempos mais recentes, essa força voltou a estabelecer-se em nossa consciência sob o símbolo de Baphomet. (Psiconauta - pg. 176 - 177)
O fenômeno momentâneo chamado vida está profundamente atrelado a essa condição evolutiva, que constrange tudo ao movimento de fuga da entropia. Embora inescapável, os ciclos de vida, de evolução, de morte, deixam profundas marcas no éter fundamental, e o "oceano metafísico" do éter terrestre foi sendo preenchido de múltiplas formas, contendo toda carga de possibilidade que cerca a grande movimentação que orienta os ciclos de vida e morte. Vida e morte são um único fenômeno através do qual a força vital reencarna continuamente. Uma negação da morte também é uma negação da vida. (Psiconauta - p. 177) Tal energia pode ter sido, em algum momento, uma força completamente indeterminada, uma grande manifestação do caos, mas hoje, ela contém tudo aquilo que há de possível no que respeita ao horizonte planetário. Peter Carroll aponta para a presença de atavismos ancestrais que estariam contidos em regiões pré-históricas do cérebro, que teriam sido fruto de períodos remotos da evolução, que habitam essa "zona cinzenta". Todos os dragões, serpentes e demônios escamosos dos mitos e pesadelos são atavismos reptilianos que surgem das partes mais antigas de nossos cérebros. (Psiconauta - P. 179)
Tais mecanismos fixadores, muito úteis aos magistas de uma forma geral, são também a pista que precisamos para continuar. Se algum dia, o horizonte psíquico do planeta foi um grande campo de possibilidades biológicas indeterminadas, hoje é possível dizer que há certa determinação em jogo no campo da existência (embora tudo permaneça, em linhas gerais, essencialmente indeterminado). A grande movimentação dos seres existentes, somada aos ciclos de vida e morte, forneceram, gota a gota, as diretrizes para que certas probabilidades fossem numericamente favorecidas e, de algum modo, determinadas. Ao nível biológico, é possível entender como algumas espécies prevaleceram, enquanto outras desapareceram, probabilidades. Por um lado, certa determinação é introduzida ao campo psíquico do planeta, determinando-o e também sendo determinado por ele. Eis aí o surgimento, em termos formais, de nosso objeto de estudo, Baphomet, ou algum de seus muitos nomes e acepções. Baphomet é o campo de energia psíquica gerado pela totalidade dos seres vivos neste planeta.(Psiconauta - p. 177)
Puxa vida, olhando assim, porque o pessoal tem medo de Baphomet? Natural ter medo, uma força de tal magnitude é esmagadora para qualquer ser que está submetido à dualidade. Você se lembra de quais são as dificuldades em fazer magia? Exatamente aquela de superar as travas que sua própria psique introduziu em você. "Os chifres duplos simbolizam a natureza bipolar de uma força que era ao mesmo tempo boa e má, clara e escura, bela e terrível. Além disso, a imagem do Deus Cornudo dá uma impressão da incrível e terrível natureza desse tipo de poder." (Psiconauta - p. 175)
E por quê isso? A primeira lição que todo indivíduo traz consigo ao ingressar na dualidade é a de sustentar sua própria forma pelo maior tempo possível resistindo a entropia. É como se pudéssemos dizer o seguinte, a entropia quer que você se torne outra coisa rapidamente, que você morra enquanto uma unidade, dando lugar ao fluxo criativo infinito do caos. A tarefa prioritária enquanto existente é resistir a isso. Por isso o acesso a dimensão etérea é tão complicado e difícil, sua mente consciente não quer você mexendo com isso, pois isso pode literalmente te matar!
Nossa parte física é muito sensível a respeito do Caos e da Magia; na verdade, nossa mente abomina essas coisas e há um mecanismo de censura muito poderoso que nos impede de usá-las ou percebê-las em sua quase totalidade, exceto por uma pequena fração. ( Psiconauta - p. 181)
Tudo é muito bonito e poético, mas, a verdade é que será preciso adentrar no âmago mais profundo de sua sombra para tentar alcançar alguma fagulha da compreensão do que seja Baphomet. Por sua característica multifacetada, a regência dos mistérios também é algo que se associa a sua presença. Afinal, só é capaz de enxergar o que há na luz quem verdadeiramente compreende sua própria escuridão. Baphomet é a própria manifestação da dualidade em sua totalidade, o que faz com que seja, ao mesmo tempo, a fonte da luz que é buscada por todo magista; ao mesmo tempo em que é a gigantesca sombra da morte, que afasta todo e qualquer vivente. O retrato clássico de Éliphas Lévi parece adquirir aqui uma nova intensidade, pois retrata não apenas a complexidade inerente ao retrato de tal divindade, como também a enorme dificuldade que significa tentar defini-lo.
Afinal, como definir a dualidade em si mesma? Considerando a impossibilidade de se definir positivamente uma entidade cuja manifestação está orientada, em sua base, pela constituição psíquica de todos os viventes, a nível planetário. A única forma possível de manifestar, do ponto de vista definicional, algo que se relaciona simultaneamente com toda a oposição que é impressa na existência, é por meio da contradição. De outro modo, como seria possível expressar aquilo no qual estão contidos, simultaneamente, vida e morte, cheio e vazio, grande e pequeno, etc. Sua figura, intoxicada de simbolismos, retém todo o acúmulo dos amores e horrores que sua visão despertou e que ainda desperta em todos tudo o que existe. Contraditória para todos os que não são capazes de compreender seu mistério, já que nela mesma reside a própria supressão desta contradição.
No primeiro aeon Xamânico, o homem reconhecia o espírito que animava os seres vivos. Esse era frequentemente representado como um Deus Cornudo, um homem com chifres. Era uma força sem moralidade, e impossível de se barganhar ou aplacar. No entanto, através de sua apreciação, de observação cuidadosa, meditação e treinamento, era possível obter uma vantagem psíquica para si e para sua tribo em um ambiente hostil. (Psiconauta - p. 174)
Baphomet é a energia que faz essa junção da dualidade. É a força que faz com que tudo seja um, ainda que pode ser percebido como múltiplo. Tudo é luz e sombra, mesmo assim, tudo é um. Papo reto, o negócio é que o magista (sobretudo, o caoísta) deve desenvolver sua sombra para atingir adequadamente os trabalhos de iluminação. Não adianta tentar acender uma luz tão forte a ponto de esconder sua sombra, a dualidade continua em tudo o que existe, e tudo o que está sob o sol possui sombra. Como uma divindade andrógina, Baphomet pode tanto representar o feminino como o masculino, ou nenhum deles, ou ambos simultaneamente. E sua representação, parece tentar abarcar toda a dualidade em suas possibilidades mais amplas. Caracterização curiosa, embora seja o melhor que tenhamos em mãos para dizer algo positivo a respeito daquilo que marca o início e o fim da dualidade. A busca por tais definições, embora difíceis e paradoxais, me parecem extremamente úteis, visto que parece não haver muita saída, pelo menos ao pessoal da MDC, que em algum momento precisará esbarrar com Baphomet por aí. Não consideramos que isso seja exatamente um problema, o enfrentamento das sombras é previsto em qualquer prática, e também já pode ser considerado como certa aproximação a essa divindade. Segundo Vayne & Wyrd: Para mim, Baphomet é o processo autoconsciente de conhecer as técnicas e a topografia do estado de transe. É por isso que existe a energia antinomiana nesta figura. (Vayne, Wyrd - p.152)
Complicadinha essa definição, não? Pois é, mas também é uma ótima forma de compreender esse aspecto fundamental de Baphomet. O transe nada mais é do que a vitória de uma guerra interna, todo mundo que se atreve a adentrar no ambiente das práticas de treinamento sabe que isso significa o enfrentamento de uma série de dificuldades. Realizar esse esforço, tentar erigir a grande obra, tudo isso é visualizar o grande quebra-cabeças chamado Baphomet. Pois lá estão contidas todas as direções possíveis que a dualidade pode contemplar, expressas como possibilidades. O que é possível? Tudo é possível, amor; ódio; calmaria; violência; iluminação; ignorância; inteligência; etc. Tudo contribui para que ponto em questão seja provado, Baphomet contém a expressão máxima da dualidade, de tudo aquilo pelo qual os existentes podem se apaixonar, e também de tudo o que podem, e devem, temer. Ser atirado a dualidade é conter em si o fermento contraditório dos princípios de vida e morte, prazer e dor, que não mais poderão ser experimentados separadamente. Um peregrino da grande obra deve entender isso, que no silêncio de sua prática mágica reside a momentânea supressão dos tropeções da dualidade. Embora o tropeço continue evidente em seu horizonte, a compreensão da limitação causal que o determina como dualidade, permitirá, ainda que por algum curto exercício de respiração, que o grande Baphomet seja contemplado como um espelho a ser iluminado.
O fato é que não será possível compreender a dualidade sem aproximar-se de sua totalidade. Vayne & Wyrd, no Livro de Baphomet, apontam tal processo como uma espécie de descida a uma caverna. O simbolismo contido na analogia é bastante útil, além de ancestral, pois há diversos relatos históricos e místicos sobre o despertar de uma consciência superior a partir de uma percepção mais profunda de uma "caverna espiritual". Afinal, como enxergar suas luzes naturais sem apagar as luzes artificiais?
Vayne & Wyrd também apontam similaridades com a famosa alegoria da caverna de Platão, grande analogia ocidental para o processo de autoconhecimento e contemplação das realidades essenciais da existência. Prisioneiros em uma caverna conhecem apenas o que lhes é mostrado através de uma parede iluminada, o que eles vêem são apenas as sombras daquilo que as coisas realmente são. A analogia segue apontando um indivíduo que consegue se livrar dessa prisão, saindo da caverna rumo à luz. Neste caso, a caverna é uma via dupla, da qual se deve primeiramente sair, para que seja possível contemplar, ainda que progressivamente, tudo aquilo que se mostra sob o sol. O retorno à caverna, embora trágico, reforça a necessidade impressa pela dualidade.
Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentadas, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, poisas correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construída um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas. (Platão - República, livro VII)
Ué, mas a caverna não era boa? Agora é ruim ir para a caverna? Pois é, este é o ponto. Muitos indivíduos não são mesmo capazes de se dar conta de sua situação, que não se trata de alcançar uma caverna misteriosa, mas sim de constatar que sua existência é permeada por ela desde sempre, e que o primeiro passo do processo consistirá exatamente no reconhecimento desta condição. Na MDC podemos brincar com isso perguntando o seguinte, "Qual é o primeiro passo que você precisa dar para se tornar um Deus?". Bom, me parece que é reconhecer, de algum modo, que você ainda não é um. O prisioneiro da caverna precisa reconhecer sua condição de prisioneiro para que possa escapar (Sim, antes que vocês digam, é parecido com matrix sim!).
Há um amplo sentido individual em adentrar a caverna, sua descida tem como destino o encontro com a sombra, o escuro, o desviado, tudo aquilo que o aprendiz necessita integrar em si. Baphomet é um mistério a ser compreendido, e que também deve ser enfrentado, tal uma esfinge que pode sim devorá-lo. A união com o divino, experiência fundamental de toda prática mágica, ou mesmo religiosa, pode ser entendida como um vislumbre de Baphomet. Na MDC, por exemplo, trata-se do processo iniciado na metamorfose de si em consciência mágica, que culmina nas tarefas do adepto. Durante a obra do adepto, a transmutação em consciência mágica é completa, e ele passa a viver o Caos perpetuamente. (P. Carroll - Liber AOM)
Axbim Kanacheta!!
FIM
Espero que gostem do texto e que ele seja útil de algum modo.
Choyofaque!!
M:.