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Comentário ao "Livro do Prazer". Parte II

Atualizado: 24 de mar. de 2023

"A Kia que pode ser expressa por ideias concebíveis não é a eterna Kia, que consome toda a crença como fogo, mas o arquétipo do "si-mesmo", escravo da mortalidade." (LDP - 219)



A passagem supracitada sugere que há uma diferença entre a Kia que pode ser concebida por ideias e a Kia eterna, que é algo que transcende a compreensão humana e é consumido por toda a crença como fogo. Noção relativamente comum de uma força ou verdade tão poderosa e transcendental é comum em várias tradições religiosas e filosóficas. A ideia é que existe uma realidade ou força que é a origem de tudo o que existe e que é a fonte última de todo o conhecimento e sabedoria. No entanto, essa realidade é tão profunda e misteriosa que é inacessível à mente humana comum, tornando-se algo que só pode ser experimentado por meio de práticas espirituais ou por meio de uma conexão direta com essa força transcendental. Essa ideia também sugere que todas as crenças e ideias que temos são limitadas e incompletas em comparação com essa realidade maior e que, eventualmente, todas as crenças serão consumidas e transcendidas por essa força inacessível.

Duas noções saltam aos olhos aqui. Primeiramente, a ideia de que o princípio é algo devorador. Mas o que estaria sendo devorado exatamente? A passagem supracitada também indica que a "Kia concebível" é vista como um arquétipo do "si-mesmo", que está limitado pela mortalidade. A mortalidade aqui, introduzida como limitação, parece estar diretamente associada à introdução de pares contraditórios em tudo aquilo que pode ser percebido como o contrário de Kia.


"A Kia que pode ser vagamente expressa em palavras é o "Nem isto - Nem aquilo", o "eu" inalterado que está na sensação de onipresença, a iluminação transcrita simbolicamente no alfabeto do desejo, sobre o qual estou prestes a escrever." (LDP - 219-220)



"Nem isto - nem aquilo", definição essencial daquilo sobre o qual o "dedo" ontológico, que aponta para o caráter fenomenológico de qualquer existência, não pode pousar, e nem aplicar uma definição positiva. Neste caso, poderíamos operar por meio de uma operação lógica simples, que nos permitiria revelar a natureza daquilo que é alvo da força devoradora de Kia. O contrário de "nem isto - nem aquilo", esta disjunção impossível, que falseia toda possibilidade de valoração ou definição positivamente dada, pode ser tratada a partir da fórmula "ou isto - ou aquilo", que introduz uma possibilidade limitadora positiva, a marca delimitadora de uma forma, a partir da qual, as possibilidades ontológicas de definição podem ser aplicadas. Escolher algo em detrimento de outro é prioritariamente perceber a unidade composta, a partir da qual todas as coisas se sustentam, ainda que temporariamente, como unas.

Neste caso, Kia parece estar sendo usada como um conceito filosófico e espiritual que se refere à essência fundamental do ser humano e do universo. O autor sugere que a Kia que pode ser expressa por ideias concebíveis não é a Kia verdadeira, mas sim um reflexo limitado dela. A ideia de que o arquétipo do "si-mesmo" é escravo da mortalidade sugere que, embora a Kia seja uma parte fundamental de cada indivíduo, ela está sujeita à mortalidade e às limitações da experiência humana. A passagem sugere que, embora possamos conceber a Kia em termos limitados, a verdadeira Kia é algo que está além da nossa compreensão e só pode ser experimentada de forma limitada durante nossa vida mortal.

Consumir a crença como fogo pode nos indicar a metáfora da impermanência, onde compreendemos que a sentença dada pela mortalidade é também uma sentença de mudança obrigatória imposta a tudo aquilo que existe. Isso significa que o fato de que o termo "mortal" implica em uma série de transformações que são inevitáveis e que obriga uma constante adaptação a novas circunstâncias ao longo do desenrolar da manifestação do universo. Assim como um rio encontra um novo curso, assim também a existência encontra novos caminhos após passar pela sentença da mudança obrigatória imposta pela mortalidade. A mudança é inevitável e pode ser causada por infinitos fatores. No caso específico da humanidade, essa sentença de mudança pode ser vista em diferentes aspectos da vida humana, como no envelhecimento, nas transformações físicas e mentais que ocorrem ao longo da vida, nas mudanças de perspectivas e valores, e na inevitabilidade da morte como um evento final.

A crença pode ser entendida como um estado mental no qual se deposita a confiança em algo que não se pode provar empiricamente. Nesse sentido, a passagem sugere que a Kia "consome" a crença, ou seja, a incorpora e a torna parte de si mesma. Isso pode ser entendido como uma forma de afirmar que a Kia é a fonte última da crença e de todo o desejo de manifestação que ela implica. Por outro lado, também pode ser lido como uma forma de enfatizar a transitoriedade da crença em relação à Kia, uma vez que a Kia é concebida como algo eterno e transcendente, enquanto toda crença, de certa forma, é limitada e efêmera.

​​ Assim, a passagem pode ser vista como uma reflexão sobre a relação entre a vontade e a crença, e como essa relação está enraizada na condição humana de desejar a manifestação de nossos desejos. Ao afirmar que a crença é uma forma de desejo de manifestação, a passagem parece sugerir que a Kia é a fonte última de toda a manifestação, e que a crença é apenas uma das muitas formas pelas quais essa manifestação ocorre. Além disso, consumir a crença como fogo também parece implicar que a principal limitação introduzida a toda forma de manifestação seja a incessante necessidade de ser suplantada por novas manifestações. Um devir infinito, simbolicamente representado por uma chama devoradora, uma necessidade constante de se superar. Toda forma de manifestação, seja ela física, mental ou espiritual, está sujeita a essa limitação inerente. Isso ocorre porque a manifestação é um processo dinâmico, nem sempre evolutivo, que está em constante fluxo e mudança. Nenhuma forma de manifestação é estática ou permanente, e todas estão sujeitas a se transformar ao longo do tempo.

Essa necessidade de superação é uma consequência direta da natureza criativa do universo. O universo é uma fonte inesgotável de possibilidades e potencialidades, e a manifestação é uma forma de explorar e expressar essa criatividade infinita. No entanto, para que novas formas de manifestação possam surgir, as formas antigas precisam ser deixadas para trás. Essa é a lei da impermanência, que governa todos os processos de manifestação. "Quanto ao nome, não há nome que a designe. Eu a chamo de Kia e não ouso reivindicá-la como sendo eu mesmo." (LDP - 219)

Descrita como uma "emanação", o desdobramento de Kia sobre o universo pode ser entendido como algo que flui naturalmente e se manifesta de forma espontânea. Ela é também descrita como sendo intensa, o que indica a natureza de seu poder, capaz de criar e transformar todas as coisas, sugerindo que tudo o que existe é um reflexo direto do seu poder. A ideia de sua intensidade pode ser interpretada como uma indicação da natureza do seu poder. Descrita como algo que é capaz de gerar e sustentar todas as coisas, sugerindo que é uma força dinâmica e criativa que está em constante movimento.Além disso, a passagem sugere que ela também seja capaz de transformar todas as coisas, o que pode ser interpretado como uma indicação da sua capacidade de mudar tudo a todo momento. Isso sugere que o universo é um lugar em constante mudança e transformação, e que a energia primordial é a força motriz por trás de todas essas mudanças."Sua emanação é sua própria intensidade, mas não é necessária, pois ela existiu e sempre existirá, um todo virgem - por sua exuberância ganhamos existência."(LDP - 220)

Podemos entender isso como um convite a refletir sobre a natureza do universo e da nossa própria existência. A sugestão mais evidente é a de que somos todos parte de um todo maior e mais complexo, e que há uma força primordial que é a fonte de toda a vida e criação. Até aí, nada muito diferente dos pressupostos axiomáticos de muitas religiões conhecidas. A diferença parece ser manifesta a partir dos desdobramentos de "como" se dá a manifestação dessa força primordial. Isso significa que a consideração de primeira ordem a ser feita é a de que ela não precisa de nada além de si mesma para existir, e que não depende de nada para se manifestar. Ela simplesmente é, e sempre será, uma presença constante e eterna no universo.

Também sendo descrita como um "todo virgem", além do postulado óbvio que pode ser interpretado partindo de uma consideração inicial de um estado de pureza e perfeição. Isso sugere que uma força primordial seja livre de qualquer imperfeição ou impureza, e que também seja capaz de gerar e sustentar todas as coisas sem se corromper ou enfraquecer. Isso sugere que a vida é um reflexo direto da presença dessa energia primordial, e que podemos ser parte de um todo maior e mais complexo.


"Não relacionada a nada, mas permitindo tudo, ela escapa a qualquer tentativa de concepção, embora seja a quintessência da concepção uma vez que permeia o prazer no significado."(LDP - 220)


Além disso, sendo descrita como não estando relacionada a nada específico, mas permitindo tudo existir, Kia também pode ser vista como algo que transcende a própria capacidade humana de concepção, o que sugere que é algo que não pode ser compreendido completamente com a mente humana. Importante notar aqui a discrepância a ser observada entre a natureza essencial de Kia e a capacidade humana de conhecer algo. É possível dizer, em certa medida, que conhecer é também conceber. Considerando que a concepção intelectual de algo é também o estabelecimento de uma relação de cópula entre aquilo que é alvo da significação, e aquilo que é significado, compreender algo vai envolver uma composição direta entre dois elementos.

Em termos de relação, o signo e o significado são dois conceitos fundamentais na semiótica. Um signo é um elemento que representa algo para alguém, ou seja, é um elemento que evoca um significado para quem o percebe, e pode ser qualquer coisa, como uma palavra, uma imagem, um gesto ou um objeto. O signo é composto por duas partes: o significante, que é a forma física do signo, e o significado, que é a ideia, conceito ou representação mental que está associada a ele. A relação entre o significante e o significado não é fixa e varia de acordo com o contexto e a cultura em que é utilizado. O estudo dos signos e dos sistemas de significação é fundamental para a compreensão da comunicação humana e do funcionamento dos sistemas simbólicos de uma forma geral. Por sua vez, o significado é o conceito, a ideia ou a representação mental que está associada a um signo.

Neste sentido, a relação entre o signo e o significado é de interdependência. O signo é o veículo que transporta o significado, e sem ele, o significado não poderia ser comunicado. Por sua vez, o significado é o que confere sentido ao signo, e sem ele, o signo seria apenas um elemento vazio e sem sentido. Além disso, é importante ressaltar que o significado de um signo não é fixo ou absoluto. O significado é construído socialmente e varia de acordo com o contexto e a cultura em que é utilizado. Por exemplo, a cor vermelha pode representar amor em algumas culturas, mas pode ser associada à violência em outras. Compreender isso é fundamental para entender a impossibilidade que está associada a Kia enquanto concepção humana. Delimitá-la como signo não seria mais que introduzir uma profunda limitação formal em sua concepção, criando algo composto que não tem qualquer força de significação profunda que a defina. Ao mesmo tempo, esta Kia concebida, limitada, tornada forma, não é mais que um anseio do espírito humano em dar forma àquilo que, por sua superioridade ontológica, não pode ser compreendida a partir da simplicidade de sua constituição. Isso também parece ser responsável pela proliferação de inúmeras definições deste absoluto que a história da humanidade mais recente tem tentado erigir. A passagem também parece indicar que essa energia é a "quintessência da concepção", sugerindo que ela é a essência fundamental de todo o processo criativo. Isso significa que, embora seja difícil para nós, entes compostos, entendermos completamente a natureza dessa força, ela é a base de todo o significado e prazer que encontramos no universo.

Ademais, sugerir que Kia esteja ligada ao prazer e ao significado, introduz mais diretamente a existência desta relação direta na concepção. Isso pode ser interpretado como uma indicação de que a energia primordial é a fonte de toda a beleza e significado que encontramos no universo, e que é através dela que podemos nos conectar mais profundamente com o mundo ao nosso redor. Em outras palavras, tudo o que é manifesto gera alguma forma de prazer, e isso se deve, por uma causalidade retroativa, ao fato de que Kia seja a causa remota de tudo. Em termos absolutos, Kia é a fonte de todo o prazer. Ao significar o universo, o que se busca é estabelecer certa triangulação entre a manifestação de algo, sua participação em Kia, e o prazer decorrente desta percepção. "Sendo anterior ao céu e à terra em seu aspecto que os transcende, mas não a inteligência, ela pode ser considerada o principio sexual primordial, a ideia de prazer no amor-de-si."(LDP - 220)

A pergunta que pode ser colocada aqui é como o mistério de Kia, a condição de sua natureza última que não pode ser compreendida em sua plenitude pela humanidade, pode ainda ser, de alguma forma percebida? E mais, por que tal percepção não é um caminho direto para uma aproximação a ela? A forma mais imediata de percepção de Kia está relacionada a uma concepção pelo desejo, o que pode ser traduzido mais diretamente como a construção de uma imagem espelho de Kia, limitada, equivocada e distorcida. Tudo isso pois o desejo que procura manifestar Kia é o que exatamente é devorado por ela, consumido por sua fome infinita. A fórmula para entender isso é um argumento muito antigo em seus termos, e que compreende a única possibilidade de manifestar o infinito como sendo por meio do que é finito. "Vivificada pelo sopro do amor-de-si, a vida é cônscia do um." (LDP - 220)

Ao buscar o vislumbre de Kia nas coisas manifestas, nos deparamos exatamente com o principal "sintoma" desta manifestação, que é a ausência de Kia. A crença é o motor de sua manifestação, e também o seu alimento. Ao conceber Kia, manifesta-se uma existência que busca dar arranjo a essa construção no mundo, buscando ancorar o princípio em tudo aquilo que o cerca, mas a barreira formal não é capaz de deter um princípio infinito, que escapa desta tentativa de delimitação, o que resta é uma concepção formal que tenta manifestar o que a cópula entre o desejo e a crença conceberam como Kia, um misto de prazer e dor, nascimento e morte, satisfação e frustração, dualidade sempre desequilibrada e desejante de seu princípio. Exalamos vida e morte a cada concepção, a cada tentativa frustrada de conceber a perfeição, a crença esvaziada de confirmação quando o objeto de prazer é exaurido de sua efetividade para ocupar seu lugar no universo, dentro de uma ordem, uma cadência, e totalmente fora da infinitude. Todas as coisas vivas representando a morte infinita de Kia, ou ainda, o desenrolar de todas as impossibilidades inerentes à infinitude, pois o que morre infinitamente não pode ser dito morto, assim como a vida infinita não pode ser dita vida. Outro desejo deve alimentar essa crença, ou ainda, outra crença deverá mover este desejo, nunca realizado, jamais satisfeito. "Aquele que é o eterno servil da crença, por isso tolhido pelo desejo, se identifica com a crença e consegue ver apenas suas infinitas ramificações nas insatisfações." (LDP - 220)

Mas isso tudo diz muito mais sobre a incapacidade de lidar com este princípio, do que efetivamente com sua vida ou morte, visto que um princípio infinito é imune a barreiras formais, sejam elas quais forem. A ideia é que, quando algo é infinito, este transcende qualquer limite ou barreira que possa ser imposto por uma forma, por mais complexa e sofisticada que seja. Isso se aplica a qualquer princípio que possa ser concebido como infinito, seja ele uma força, uma ideia ou mesmo uma entidade. A barreira formal, por sua vez, é uma limitação imposta pela forma, ou seja, uma restrição que decorre da própria natureza das coisas. Isso pode ser observado em diversas áreas do conhecimento, como na matemática, onde as regras formais limitam as possibilidades de cálculo e resolução de problemas. Isso significa que, quando falamos de algo infinito, estamos lidando com algo que transcende as barreiras formais e que é capaz de se manifestar de maneira ilimitada e infinita, sem se deter diante de qualquer obstáculo ou restrição. "Essa sexualidade, progenitora-de-si e de todas as coisas, mas que não se assemelha a nada, incorpora o perene em sua simplicidade primitiva. O tempo não a modificou, por isso eu a chamo de "nova"."(LDP - 220)

A percepção humana é limitada e condicionada pela dualidade e pelos filtros cognitivos que moldam a experiência individual. Além disso, a busca por uma aproximação direta com Kia pode ser afetada por desejos pessoais, expectativas e limitações culturais e sociais. Por isso é necessário dizer que a percepção de Kia não fornece um caminho direto para sua aproximação. O resultado da busca por Kia não é mais do que a visão de nós mesmos. Hipoteticamente, ao compreender Kia, percebemos que somos parte dela e que nossa existência está ligada a ela. Assim, a percepção de Kia não é algo que pode ser alcançado como algo separado de nós mesmos, mas sim como uma compreensão mais profunda de nossa própria natureza. Ao atingir essa percepção, é possível experimentar a realidade com mais clareza e reconhecer possibilidades mais profundas de conexão com tudo ao nosso redor. "Como Kia transcende a concepção, é imutável e inexaurível - não é preciso nenhuma iluminação para vê-la. Se abrirmos a boca para falar dela não falamos dela, mas da nossa própria dualidade, por mais poderosa que seja em sua simplicidade inicial."(LDP - 221)


A ideia principal é que a busca por Kia não é uma busca por uma entidade exterior a nós mesmos, mas sim uma busca por uma compreensão mais profunda e completa de quem somos. Nós nos dotamos com o poder que concebemos dela, o que significa que a compreensão de Kia é influenciada pela nossa própria percepção e entendimento do mundo. A partir da nossa própria capacidade de autotransformação e compreensão de nós mesmos que podemos alcançar a libertação, e não por meio de uma entidade externa. E isso é umas das ideias centrais do ocultismo, a ideia da autodeificação. A busca por um Deus que pode ser capaz de resolver os meus problemas é deixada de lado, e mesmo a ideia de um "Personal Jesus" passa muito mais pela compreensão da divindade em mim, do que no preenchimento de um suposto vazio interior por uma entidade suprema, onde buscar uma conexão com o divino fora de si mesmo será algo limitado e incompleto. Assim, a busca pelo divino deve se voltar, principalmente, para uma busca interna, na qual o indivíduo reconhece sua própria divindade e seu poder de manifestação.

É a partir dessa conexão interna que se pode verdadeiramente compreender e se conectar com o divino, uma parte intrínseca da nossa própria essência. Eu mesmo estabeleço os limites que sou capaz de alcançar, mas é Kia quem os manifesta. A realidade é uma manifestação da Kia, mas que cada indivíduo tem a capacidade de estabelecer seus próprios limites dentro dessa realidade. Em outras palavras, a Kia é a fonte da manifestação, mas cada indivíduo é responsável por sua própria experiência dentro dessa manifestação. Isso pode ser entendido de várias maneiras. Por exemplo, alguns podem interpretar isso como uma afirmação da importância da liberdade individual. Cada indivíduo tem a capacidade de escolher seu próprio caminho e de definir seus próprios limites. Outros podem interpretar isso como uma afirmação da responsabilidade individual. Se somos os responsáveis por estabelecer nossos próprios limites, também somos responsáveis por superá-los. A realidade é maleável e moldada pela nossa própria perspectiva. O que percebemos como limites são, na verdade, construções nossas. Mas esses limites só existem porque a Kia os manifesta. É através da Kia que a realidade se manifesta, mas somos nós que definimos os limites da manifestação a partir da crença. "Nós dotamos a nós mesmos com o poder que concebemos dela, e ela age como mestre, nunca como causa da libertação. É sempre a partir do si-mesmo que conformo Kia, e ela, mesmo sem forma, pode ser considerada a verdade." (LDP - 221)

Neste sentido, parece-nos clara a indicação que a manifestação é regida pelo regime da dualidade, esta lei fundamental da existência, onde tudo que existe pode ser dito como composto por duas polaridades opostas e complementares. O contraditório afirma a composição a partir da tensão entre a necessidade de contrariedade que rege toda e qualquer existência. Em outros termos, para que eu seja algo positivamente afirmado, estarei negando simultaneamente uma série de outras possibilidades, tornando-me algo determinado, dotado de uma forma. A posse da forma exprime a relação entre o oposto e o complementar. A existência de algo tangível é uma manifestação da relação entre opostos. A dualidade é uma lei universal, em que cada coisa ou conceito tem seu oposto e seu complemento necessário. Por exemplo, o dia tem a noite como seu oposto complementar, a luz tem a escuridão, o bem tem o mal, e assim por diante. A posse da forma é uma maneira de expressar essa dualidade e a interconexão entre as coisas. Através da forma, também é possível perceber a relação entre o oposto e o complementar, e entender que um não pode existir sem o outro. A experiência é a forma como interagimos com o mundo e como aprendemos sobre ele. Ao vivenciar diferentes situações, estabelecemos relações entre elas e também com nós mesmos. Essas relações são formadas através de oposições, que são separações entre coisas que são opostas ou diferentes.

Outrossim, é preciso lembrar que o espaço para o mágicko se configura a partir desta espécie de suspensão momentânea da dualidade como estado alterado, um êxtase, que não é um estado permanente e facilmente alcançado, mas sim um estado temporário que requer esforço e trabalho duro para ser alcançado. É algo que pode ser experimentado em momentos específicos, mas não pode ser mantido constantemente. No entanto, para alcançar esse estado, é necessário investir tempo, energia e dedicação em um processo de autodescoberta, transformação e desenvolvimento pessoal. "A dualidade é a lei, e a realização pela experiência estabelece relações e oposições por unidades de tempo. O êxtase, durante qualquer intervalo, é algo difícil de obter e requer um trabalho pesado." (LDP - 222)

Mas isso está longe de garantir a libertação da dualidade, a possibilidade do êxtase não é mais que uma manifestação momentânea, criando uma condição de consciência e existência que é marcada pela impermanência e pela mudança constante. O sofrimento é uma parte inevitável da existência humana, mas a intensidade e duração desse sofrimento podem variar. Da mesma forma, o prazer e as emoções positivas também podem ocorrer em diferentes níveis e durações. A dualidade é apresentada como uma realidade que se alterna entre sofrimento e prazer, em que experimentamos emoções diversas. Isso sugere que a dualidade não é apenas uma condição objetiva do mundo, mas também uma experiência subjetiva. Essa dualidade pode ser interpretada como uma manifestação da polaridade presente em todas as coisas. Assim, a passagem sugere que a dualidade não é um problema a ser superado, mas sim uma condição fundamental da existência.Além disso, a dualidade é apresentada como uma ilusão, o que sugere que a realidade última transcende a dualidade e não é limitada por ela. A dualidade é apenas uma forma de perceber o mundo, e não a única ou a verdadeira. "Vários níveis de sofrimento que se alternam com rajadas de prazer e de emoções menos aflitivas parecem ser a condição da consciência e da existência. De uma forma ou de outra, a dualidade é a consciência enquanto existência. Ela é a ilusão de tempo, tamanho, entidade etc. - o limite do mundo." (LDP - 222)

Continua.....


SuiralucivalcodoM


  • Todas as citações do "Livro do Prazer" foram extraídas da Edição em português, publicada pela editora Palimpsestos(2021).




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