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Comentários ao "Livro do Prazer"

Atualizado: 14 de fev. de 2023


Em nossas reuniões de leitura, começamos a nos aventurar pela obra de Austin Osman Spare. O texto que apresento aqui representa um primeiro esforço de leitura das páginas iniciais, focando principalmente em "Diferentes Religiões e Doutrinas como meios para o Prazer, a Liberdade e o Poder".



"As palavras Deus, religião, fé, costumes, mulher, etc., consideradas como formas de crença, são usadas para se referir a diferentes "meios" de controlar e expressar o desejo: uma ideia de união, que se dá por uma ou outra forma de medo e acaba por resultar na sujeição a limites imaginários, ampliados pela ciência que, a um custo muito alto, acrescenta à nossa altura um mero centímetro - nada mais." LDP (209)


A princípio, o que a passagem parece estar tentando relacionar?


Deus é descrito como a divindade ou entidade suprema, o ser supremo, que é reverenciado e adorado por muitas religiões. A religião é definida como uma crença ou conjunto de crenças que se referem a uma divindade ou entidade suprema e seus ensinamentos, e que são seguidos por uma comunidade de fiéis. A fé, por sua vez, é definida como algo sem a necessidade de provas ou evidências concretas. Isso é uma característica importante da religião, pois é a fé que permite que as pessoas acreditem e seguem os ensinamentos de sua religião, mesmo sem a necessidade de comprovação lógica ou científica. Costumes são descritos como comportamentos ou tradições que são cultivadas em uma sociedade ou grupo, e que são passadas de geração para geração. Esses costumes são influenciados pela religião e por outros fatores culturais, e podem incluir tradições como cerimônias, rituais e práticas alimentares.


A passagem sugere que Deus, fé e religião são elementos que integram indivíduos em uma comunidade ou grupo coletivo. Em muitos casos, esses elementos são considerados fundamentais para a formação da identidade individual e coletiva, ajudando a moldar as crenças, valores e comportamentos das pessoas. A fé em Deus, por exemplo, pode ser vista como um fator unificador que une as pessoas em torno de uma crença compartilhada e de valores comuns. A religião, por sua vez, pode fornecer uma estrutura organizacional e cultural que permite que as pessoas se conectem e trabalhem juntas em torno de um objetivo comum. Além disso, a religião também pode oferecer um conjunto de práticas e rituais que ajudam a moldar a identidade individual e coletiva das pessoas. Estes elementos, a partir da relação possível levantada pelo autor, parecem se tornar importantes características capazes de unir e integrar os indivíduos, fornecendo uma base comum para a formação da identidade individual e coletiva, e ajudando a moldar as crenças, valores e comportamentos das pessoas.


Neste caso, para além de quaisquer analogias que flertam com obviedades, o termo "mulher" evocado por Spare, parece ser o elemento mais complexo desta analogia. O autor parece falar de uma perspectiva exclusivamente masculina, que toma como meio da relação a crença em uma "completude" que poderia ser advinda de uma projeção que tomaria a mulher como a parte complementadora daquilo que "falta" em um indivíduo. Dois possíveis desdobramentos, (1) trata-se de uma metáfora sexual, na representação do coito como ato de completude, a conjunção carnal como forma de acabamento para o ser humano. (2) Uma crítica ao casamento cristão como projeção da necessidade social de complementação da vida.

A meu ver, esta segunda posição parece enunciar mais diretamente os termos em associação logo no início da passagem. "Deus, religião, fé, costumes,.." se completariam na presença de uma mulher que, na expressão cristão do matrimônio sagrado celebraria a realização concreta de todas essas formas de "controlar e expressar o desejo". A despeito da dificuldade de análise relacionada a essa terminologia, o próprio texto, mais a frente, indicará certa imagem de homens moralmente baixos e vis, tanto no sentido de uma escravidão ao religioso, quanto a certa pretensão de poder oriunda de práticas magickas enfraquecidas (dandys). Em ambos os casos, a imagem de tais homens indica a pretensão de poder associada a aos vínculos simbólicos com tais expressões de poder. Caberiam aqui ainda mais considerações sobre o uso do termo "mulher" como uma das referências aos meios de controlar e expressar o desejo.


Obviamente, também é possível considerar que cada um dos termos se ocupa solitariamente no desempenho desta função. Enquanto expressões delimitadas do desejo, os intransponíveis e inacessíveis alvos inalcançáveis do desejo. Essa frase está se referindo a coisas que são desejadas por muitas pessoas, mas que são intransponíveis ou inacessíveis, ou seja, não podem ser alcançados. Ela sugere que esses objetos são alvos inalcançáveis para aqueles que os desejam, e que eles são uma fonte constante de desejo sem realização. É uma observação sobre a natureza humana de desejar aquilo que é inacessível ou difícil de ser alcançado.


Quando as pessoas desejam algo muito intensamente e percebem que não conseguirão alcançá-lo, é natural que experimentem frustração. A frustração é uma emoção complexa e negativa que pode ser definida como a sensação de insatisfação ou desapontamento que resulta da percepção de que não se conseguiu alcançar uma meta ou objetivo. E quando esse objetivo é inalcançável, a frustração pode ser ainda mais intensa, já que não há nenhuma possibilidade de mudança na situação. Além disso, o desejo de coisas inalcançáveis pode gerar comportamentos insalubres, como a obsessão em obtê-las ou a negação da realidade. Isso pode levar a uma série de problemas emocionais e psicológicos, como ansiedade, tristeza e baixa autoestima. Está em jogo aqui certa antecipação de uma compreensão insuficiente de si, cuja referência parece estar diretamente relacionada ao cristianismo como fio condutor de tal expressão.


"[...]uma ideia de união, que se dá por uma ou outra forma de medo e acaba por resultar na sujeição a limites imaginários[...]".Bem aos moldes da crítica nietzschiana, a passagem pode indicar que a incompletude de uma percepção religiosas como a moral cristã, com sua ênfase na submissão à vontade de Deus e no sofrimento como caminho para a salvação, é opressiva e limitante para o potencial humano. A formatação do medo é o que acaba por moldar as formas do desejo. ​​Esta frase sugere que o medo pode ter um impacto significativo na forma como os indivíduos desejam. O medo pode fazer com que mudem suas prioridades e desejos, a fim de evitar ameaças ou riscos. Isso pode levar a escolhas baseadas em cautela ao invés de verdadeiras aspirações ou paixões. Por outro lado, o medo também pode criar desejos novos, como o desejo de segurança ou proteção. Em última análise, a frase sugere que o medo pode ser uma força influente na forma de encarar e alcançar os desejos.


Quando tememos alguma coisa, nossa mente pode criar barreiras em nossa própria mente, que nos impedem de agir ou alcançar coisas que desejamos. Essas barreiras podem ser limitações internas, como a falta de autoconfiança ou a insegurança, ou podem ser barreiras externas, como medos sociais ou culturais. O medo também pode nos impedir de experimentar novas coisas ou de sair da nossa zona de conforto, o que pode impedir possibilidades de crescimento e evolução. Para além disso, a saída lógica pela "ciência" também parece ter sido interditada por Spare, ao que parece ser uma crítica de seu aspecto também limitador, que acrescentaria muito pouco ao desenho geral de tudo, mesmo que custe muito caro. Mas o que pode significar a expressão "a custo muito alto"? É bem provável que o aspecto enaltecido aqui se relacione ao também limitador aspecto religioso que uma postura cientificista pode alcançar. A totalização apressada dos valores, que seriam concentrados a partir de uma crença na infalibilidade da ciência como método exclusivo para explicar a realidade. A passagem de Spare parece indicar certo questionamento da ideia de que a ciência é a única forma válida de conhecimento e que todos os aspectos da vida devem ser explicados apenas através de métodos científicos. Dado o contexto, é possível arriscar que o argumento se direcione ao fato de que o cientificismo pode (e vai) limitar a compreensão do mundo ao redor, uma vez que não leva em conta questões éticas, morais ou estéticas.


Questões éticas, morais e estéticas são subjetivas e dependem de valores e crenças pessoais, e não podem ser explicadas ou comprovadas apenas com métodos científicos. Por exemplo, a questão de se é certo ou errado matar pessoas é uma questão moral, e não pode ser respondida apenas por meios científicos. Além disso, a ciência também não parece inteiramente adequada para responder a questões estéticas, como se algo é belo ou feio. Essas questões dependem de julgamentos subjetivos, muitas vezes influenciados por contextos culturais e históricos.


Também poderíamos afirmar que o cientificismo é uma visão simplista da ciência, pois ele assume que todos os fenômenos podem ser explicados por leis naturais deterministas. No entanto, muitos acontecimentos na vida, como a consciência e a criatividade, ainda hoje são misteriosos e difíceis de serem explicados apenas por meios científicos. Poderíamos, contudo, dizer que sim, a ciência pode ser utilizada para dar conta da realidade, mesmo deixando de lado seus pontos falhos e tratando-a como uma espécie de religião (cientificismo), mas o custo disso seria muito alto, pois sua propagação irrestrita a tornaria como uma espécie de religião totalizante e limitadora de consciências. Interessante observar que o alvo parecia estar diretamente posicionado em uma perspectiva religiosa tradicional, como o cristianismo, no entanto, o que parece ditar a tônica da passagem é o perigo de se assumir uma posição pretensamente universal como totalidade, e utilizá-la como baluarte paradigmático. Interessante observar que este ponto parece estar em desacordo com o desenvolvimento de P. Carrol, muitos anos mais tarde, em algumas de suas obras. Obviamente, é muito provável que estejam em jogo aqui dois paradigmas científicos distintos, visto que o P. Carrol aponta para uma prática científica que pode assimilar o mágico enquanto ganho efetivo de probabilidades. Por sua vez, a crítica de Spare está mais inclinada a uma ideia de ciência que ainda tem em mente o estabelecimento e a manutenção de modelos que seriam em grande medida, dogmáticos em suas proposições, criando um efeito mental danoso aos indivíduos orientados por eles. Isso tudo pode nos orientar para uma passagem do texto que surge em sequência, esta que é bastante emblemática nesta fase do pensamento de Spare.


"[...]quanto menos é dito de Kia, menos obscura ela se torna." LDP (209)


A passagem assim parece conduzir a um primeiro pressuposto axiomático que indica o esgotamento das pretensas orientações simbólicas determinantes que, tanto os "meios para controlar e expressar o desejo", mencionados por ele, quanto a própria crença desmedida na ciência, parecem não ser capazes de dar conta. Em todos os casos, estes meios são composições mentais complexas, construções de pensamento que tem em mente uma abordagem semântica, ou ainda, traduzindo de forma simples, são manifestações mentais sobre as quais sempre existirá uma pretensão discursiva. Kia, por sua vez, é o próprio movimento de ultrapassamento desta dimensão de manifestação, um passo adiante, onde a composição categorial do discurso sobre o mundo da vida não é capaz de alcançar. E agora, provavelmente, seja o momento onde deve-se jogar fora a escada utilizada para subir até aqui (aos moldes wittgensteinianos), pois os jogos simbólicos da linguagem a da simbolização objetiva e passiva do mundo foram ultrapassados.

Enquanto tais, as diferentes formas de linguagem funcionam como jogos diferentes, cada um com suas próprias regras e convenções. Esses jogos são moldados pelo contexto cultural e histórico, bem como pelas relações sociais entre as pessoas que usam a linguagem. Para entender o significado de uma frase ou palavra, seria também entender como eles são usados em diferentes jogos de linguagem. O significado de uma palavra ou frase pode não ser dado por uma correspondência objetiva com alguma coisa na realidade, mas sim pelo uso que as pessoas fazem dessas palavras em diferentes jogos de linguagem, uma forma de explorar as limitações da linguagem e a relação entre a linguagem e a realidade.

E por que falar disso no que se refere Kia? Para usar a perspectiva de Wittgenstein, seria possível dizer que não há uma realidade objetiva independente da linguagem e que toda a nossa compreensão da realidade é moldada pela linguagem que usamos para descrever e compreender o mundo ao nosso redor. Donde, as fronteiras da linguagem seriam as fronteiras do mundo e que, para além disso, não há nada para conhecer. Há muito o que se discutir sobre a posição de Wittgenstein em relação à linguagem, no entanto, o que nos interessa aqui é entender apenas que o ponto final de sua posição, os limites da linguagem, seriam apenas o ponto de partida para o que verdadeiramente interessa a Spare.


Isso nos dá um grande horizonte investigativo, já que a própria obra na qual nos debruçamos agora, parece investir muita energia em apontar certo esgotamento simbólico, mas não o esgotamento buscado para a fixação de um sigilo, e sim o esgotamento das possibilidades em função de sua cristalização que pode ser entendida como a formação de conceitos rígidos e imutáveis, que são considerados verdadeiros e corretos. Esses conceitos podem ser resultado de ensinamentos ou crenças herdadas, experiências passadas ou estruturas sociais e culturais estabelecidas. Tal rigidez pode impedir a criatividade, pois limita a capacidade de pensar de forma aberta e explorar novas ideias e perspectivas. Quando as idéias se cristalizam, elas se tornam uma barreira para a criatividade, pois os indivíduos estarão, em certa medida, constrangidos a seguir as crenças e conceitos estabelecidos, em vez de explorar novas possibilidades e perspectivas. A estratégia parece evidente, utilizar os sintomas provocados por um uso desregulado da crença, que provoca o enfraquecimento das possibilidades de exploração positiva de uma compreensão mais profunda se si, para analisar as possibilidades de utilização positiva da crença, como genuína ferramenta mágica. E aqui também parece surgir um novo pressuposto axiomático. Embora apresente certa tendência à erraticidade, o LDP fornece calculadamente seus "nós" argumentativos, orientando certa cadência conceitual, progressivamente apresentada. Vejamos:


"Somos aquilo em que acreditamos e somos o que o ato de acreditar implica na concepção ao longo do tempo; a criação é causada por essa sujeição à fórmula." LDP (211)


A passagem supracitada indica uma fórmula: (1) Aquilo que somos é aquilo no qual (2) acreditamos. Binômio estranho entre ser e crença, mas que o desdobramento da fórmula se ocupa em resolver. (2) O ato de acreditar leva a (3) concepção que, podemos dizer, é o que (4) perdura no tempo. Uma forma de tentar compreender a "fórmula" é operar com a mesma sobreposição que parece estar aqui em jogo. (1) Ser, e (4) estar no tempo, que poderíamos unir em um enunciado de (1+4) existência, equivale a dizer que o (2) ato de acreditar é o que leva à (3) concepção. A (2+3) essência de algo poderia se orientar por tal relação, na medida em que consideremos também que "conceber" algo, pode ser considerado a partir de um mesmo direcionamento que o da crença. Um uso laico do termo "crença" também pode ser equivalente ao de "fixar" algo. Crer em algo é também delimitar aquele "algo" a partir de uma valoração fixa, dando a este "algo" em questão o substrato necessário para que sua permanência no tempo se justifique, ainda que simplesmente enquanto crença. "Conceber uma crença", pode ser uma sentença que indica a manifestação de algo fixo, ainda que simplesmente no plano mental, e todos nós conhecemos muito bem o poder existencial que esse tipo de fixação possui no que chamamos de realidade. A essência de uma crença, ou a sua manifestação, dependem exclusivamente daquilo que as suporta, neste caso, o indivíduo. Este por sua vez, não escapa do raciocínio tautológico de ser determinado pela mesma crença que determina, determinante e determinado contidos no mesmo sujeito. Neste sentido, a "sujeição à fórmula" não será algo muito distante de uma petição de princípio, visto que sujeitar-se a esta dinâmica da concepção é também assumir retroativamente todos os demais pontos, seja qual for a ordem da qual consideremos partir. Noves fora, pareceu-me muito haver aqui uma armadilha lógica, onde a "sujeição à fórmula" parece ser também um postulado axiomático inescapável. Em outros termos, seria possível escapar à fórmula?


"O que tu determinaste na tua religiosidade é a tua própria tormenta, por mais que imaginária! A perspectiva não é agradável; isso é o que tu ensinaste a ti mesmo! Tornou-se algo congênito, e teu corpo é sensível. " LDP (211)


A passagem "aquilo que estiver determinado em sua religião será sua tormenta" sugere que as crenças religiosas rígidas e inflexíveis podem levar a uma sensação de angústia e opressão. Isso ocorre porque, quando as pessoas se apegam a crenças religiosas imutáveis e não permitem que sua fé evolua e se adapte a novas situações, elas podem se sentir presas e oprimidas pelas exigências da sua fé. Além disso, essas crenças religiosas rígidas podem levar a conflitos internos e externos. Internamente, as pessoas podem se sentir angustiadas ao tentar equilibrar suas crenças religiosas com outras partes de sua vida, como valores pessoais, relacionamentos ou decisões profissionais. Externamente, as crenças religiosas rígidas podem levar a conflitos com outras pessoas, especialmente se suas crenças forem diferentes. De acordo com essa perspectiva, as pessoas criam suas próprias tormentas religiosas ao se apegarem a crenças rígidas e inflexíveis, e essas tormentas são uma construção mental, em vez de uma realidade objetiva.


Além disso, a passagem enfatiza que as crenças religiosas são uma construção da mente humana, e que cabe a cada indivíduo decidir o que lhes serve e o que não lhes serve. Neste caso, uma escolha que leva em conta a determinação formal da religião como guia de uma concepção de mundo onde o enfraquecimento do gênero humano é tomado como guia para a construção de uma cosmologia de poderes que ultrapassam e controlam a humanidade. A afirmação de que a religião é uma fraqueza humana sugere que as pessoas recorrem à religião como forma de lidar com as incertezas e dificuldades da vida, e que essa dependência é um sinal de fraqueza. Essa perspectiva enfatiza que a religião é uma fonte de conforto e consolo para aqueles que são incapazes de lidar com o mundo de maneira independente e autônoma. No entanto, essa perspectiva pode ser considerada um pouco simplista e reducionista, pois despreza a complexidade e a profundidade das crenças religiosas.

Além disso, a religião pode ser vista como uma fonte de força e resiliência para muitos, e não apenas como uma fraqueza. O que parece estar em jogo, neste caso, é a consideração do uso pervertido da religião, no sentido de produzir uma crença, esta última, a verdadeira fonte de concepção e, como tal, livre para se auto sabotar. De uma forma geral, uma das formas mais antigas de manipulação da crença é a religião, e a continuação da passagem parece indicar que a força criadora contida na fórmula da concepção poderia se voltar muito intensamente contra si mesmo. A concepção de uma condição humana atormentada, fruto congênito de uma construção mental erguida e sustentada a partir de uma imagem coletivamente transmitida, uma espécie de "pecado original" a ser expurgado, um sintoma visceral que acompanharia a humanidade desde a sua origem.


A doutrina do pecado original é uma crença presente na teologia cristã, segundo a qual a humanidade herdou o pecado original do primeiro homem, Adão, e, como resultado, todos os seres humanos nascem com uma natureza pecaminosa. Isso significa que a inclinação humana é para o mal e que a necessidade de redenção é inerente ao ser humano. De acordo com essa doutrina, o pecado original é o motivo pelo qual o mal e o sofrimento existem no mundo, e a redenção é necessária para que a humanidade possa ser livre do pecado e retornar à comunhão com Deus. No entanto, a doutrina do pecado original é controversa e tem sido objeto de críticas ao longo da história, por argumentos que consideram a ideia de que todos os seres humanos nascem pecaminosos é injusta e implica em uma visão negativa e pessimista da natureza humana. Além disso, a doutrina do pecado original é questionada por muitos que acreditam que o mal e o sofrimento no mundo podem ser explicados de maneira mais satisfatória sem recorrer a uma crença no pecado original.


Sem sombra de dúvidas, a doutrina do pecado original é uma das maiores construções mentais que a fraqueza humana foi capaz de alimentar. A necessidade de redenção por uma culpa socialmente introduzida quase que simultaneamente a ingestão de leite materno, e que convenceu de converteu os indivíduos em máquinas mentais produtoras de frustração. O homem estaria separado de sua própria divindade, fraco e decaído, vítima do acaso, ansioso por alcançar a redenção de tal condição, ainda que, para isso, necessite experimentar toda sorte de tormentos.


"Alguns louvam a ideia de fé. Pensam que acreditar que são deuses (ou qualquer outra coisa) os tornaria deuses - mas o que provam por tudo que fazem é que estão plenos de não-crença. Melhor é admitir a incapacidade ou insignificância do que reforçá-la pela fé, uma vez que a fé superficial "protege", mas não realiza nenhuma mudança no vital. Portanto, rejeite a primeira em prol da segunda." LDP (212)



Esta passagem desperta muitas discussões. Primeiramente, há aqui o que parece ser a indicação de certa contraposição entre a ideia de crença e a de fé. A crença e a fé são conceitos que estão estreitamente relacionados, mas possuem diferenças importantes. A crença pode ser definida como uma convicção ou opinião sobre algo, baseada em informações ou conhecimentos que alguém possui. Por exemplo, uma pessoa pode acreditar que a Terra é redonda, porque estudou o assunto ou ouviu informações confiáveis sobre isso. Por outro lado, a fé pode ser definida como uma crença que é mantida mesmo sem provas ou evidências concretas. Por exemplo, uma pessoa pode ter fé em Deus, mesmo sem ter provas científicas da existência de Deus. A fé é uma questão de confiança e crença pessoal, que pode ser alimentada por uma variedade de experiências pessoais, tradições, ensinamentos religiosos, entre outros fatores. Neste caso, parece sair de cena a ideia de uma crença direcionada para admissão da fraqueza humana como uma condição natural, como havia sido discutido anteriormente.


Contudo, Spare parece considerar a posição oposta, onde a elevação da condição humana a uma crença em sua própria divindade que, embora mais confortável aos ocultistas (principalmente na magia do caos!), também carece de certa delimitação para que o seu excesso não funcione como um meio de escoamento do potencial intencional desta perspectiva. A própria fé como instrumento de auto divinização se volta para uma nova distribuição dos termos, já que a admissão, a partir do que parece ser um rompante de socratismo, da incapacidade ou insignificância seria aqui contraposto ao reforço de uma não-crença. E por que diabos admitir isso agora seria melhor do que quando se considera uma criatura enfraquecida e decaída? O remédio do fraco é a força, o remédio do forte, a fraqueza? Longe disso. O reforço aqui se deve a consideração de que a auto divinização, embora melhor que a crença em uma condição decaída, quando for considerada apenas a partir de um ato de fé, será também um mecanismo de determinação formal radical, que cristaliza a forma em um cenário intransponível, embora neste caso não tão tormentoso quanto na consideração de uma fraqueza ontológica da alma, mas ainda sim atuante como fonte de esterilidade para criação. Neste sentido, embora relativamente protegido em sua máscara de Deus, o indivíduo não realiza o verdadeiro processo transformador, permanecendo, de certa forma, prisioneiro de sua condição. Uma fé superficial não tem poder de trazer mudanças profundas e significativas na vida. Ela apenas "protege", mas não promove uma transformação real e duradoura.


O que parece evidenciar ambas as posições religiosas apontadas aqui parece ser a incapacidade de mudança que se segue do processo de assumir qualquer uma das posições, cuja cristalização conduziria o indivíduo a uma espécie de torpor paralizante, onde a repetição e a sustentação de uma condição específica seriam mantidas por uma repetição exaustivas das "premissas escudo", máximas que podem sustentar algo de pé, como um ponto fixo, mas que, a longo prazo, não são mais do que venenos paralisantes. A liberdade da concepção dependerá de certa entrega, algum abandono de uma zona de conforto na qual a defesa, embora garanta a permanência, impede exatamente a concepção do novo.


Outrossim, há que se considerar ainda que toda percepção de Deus é uma concepção humana, delimitada e limitada em conformidade com os limites impostos por aquele que anima este Deus. Uma ideia que se distancia da forma tradicional de considerar um determinismo, já que deposita a força de condução exatamente no ponto que normalmente sofre a ação das forças cósmicas deste determinismo. A ideia tradicional, amplamente encontrada em muitas tradições religiosas e filosóficas, que afirmam que o universo e tudo o que nele existe foi criado por uma força divina ou por um ser superior. Essa força ou ser é considerado o responsável por todas as leis naturais, os ciclos da vida e da morte e as diferentes formas de existência. A partir desta perspectiva, pode-se argumentar que a vida e as circunstâncias de cada indivíduo são governadas pelas determinações de seu criador, e que, portanto, a crença em uma força superior é uma fonte de ordem e sentido no mundo.


E ainda que não consideremos a presença de um criador infalível, é também possível considerar que todos os eventos no universo possam ser determinados por leis naturais e causas anteriores, e que, portanto, o futuro é completamente previsível. De acordo com esta teoria, todos os eventos, incluindo ações humanas, estão determinados por causas físicas e não podem ser alterados. Em ampla medida, é possível contrapor essa posição partindo do pressuposto de que a liberdade humana seja incompatível com essa espécie de determinismo cósmico, enquanto também será possível afirmar que a teoria seja incompatível com a existência de eventos aleatórios e imprevisíveis no universo. No entanto, essa ideia também pode ser questionada, pois muitas pessoas acreditam que a vida e as circunstâncias são governadas pelo livre-arbítrio e pela ação humana, e não por uma força divina, ser superior, ou ainda, por uma causalidade intransponível.


"Outras pessoas, menos insensatas, encobrem a memória de que Deus é uma concepção delas mesmas e que, como tal, está sujeito à Lei. Portanto, será assim tão desejável essa ambição pela fé? Falando por mim, eu nunca vi um homem sequer que já não seja Deus." LDP (212)


Nesta fase do texto, pessoas menos insensatas seriam capazes de compreender que Deus é uma compreensão de si mesmas. No entanto, essa compreensão é um evento limitante, sendo responsável pela introdução das mesmas categorias formais das duas perspectivas mencionadas anteriormente. Em outras palavras, sendo Deus uma concepção das próprias pessoas, este Deus pessoal, se molda a maneira de seu criador e também responde desta mesma maneira. Esse ajuste, longe de ser um ponto de sustentação, torna-se apenas a expansão da própria fraqueza, ao indicar uma submissão da divindade criada às mesmas limitações do criador. Em outros termos, um Deus criado falha da mesma forma que o seu adorador também falha. Neste sentido, a ambição pela fé parece ser algo contraditório, pois o movimento da fé parece estar ligado a algo externo. Desta forma, há uma falta ou ausência de compreensão, mas isso ainda pode conduzir a vontade e desejo. Todo ser humano é um Deus, na medida em que estabelece o regime sobre o qual a injustiça é julgada, além de estabelecer a própria condenação e castigo. Este mesmo ser humano escondeu a memória da sua íntima relação com este Deus criado por ele mesmo, e vestiu-a com o manto da fé impossível e avidamente desejada, castrando sua compreensão de sua própria natureza divina.


A passagem supracitada parece também indicar que o texto está expandindo o conjunto de pressupostos axiomáticos. Isso indica que o texto está ampliando as noções fundamentais que estão sendo estabelecidas tomadas como pequenos imperativos. Esses pressupostos são considerados como os pilares da argumentação ou da teoria que está sendo apresentada, e a ampliação da coleção deles significa que o autor está fortalecendo o seu argumento, estabelecendo mais claramente suas premissas e fornecendo uma base mais sólida para suas conclusões. Além disso, é também possível afirmar que o texto apresenta uma série de temas relevantes, no entanto, ainda há muito por ser explorado. A importância desse elenco temático é evidente, porém o autor parece estar sugerindo que ainda há muitos desafios a serem superados.


"Outros acreditam na prece… ainda não aprenderam que pedir é o mesmo que ter o pedido negado?"LDP (212)


Existe uma grande diversidade de pensamentos e crenças a respeito da oração e sua efetividade na obtenção de resultados. Alguns acreditam na prece como uma forma de se comunicar com a divindade e pedir por ajuda em questões pessoais e coletivas. Nessa concepção, a prece seria uma ferramenta poderosa para alcançar objetivos, superar desafios e trazer felicidade e paz. Uma possível explicação é que a prece pode ser vista como uma forma de conexão com uma força superior. Para algumas pessoas, essa conexão é mais forte e profunda, e por isso, suas preces são mais propensas a serem atendidas. Outros podem ter uma fé menos profunda ou uma ligação mais fraca com a força superior, o que pode explicar por que suas preces são menos propensas a serem atendidas.


Além disso, a intenção e a motivação por trás da prece podem afetar sua efetividade. Aqueles que fazem preces genuínas, motivados por uma sincera busca por ajuda ou cura, podem ser mais propensos a serem atendidos do que aqueles que fazem preces meramente por hábito ou por convenção. O que parece alinhar a prece em relação a sua influência pelo livre-arbítrio. Se alguém está pedindo algo que vai contra as leis do universo ou o bem-estar de outras pessoas, sua prece pode não ser atendida. De maneira semelhante, se alguém está pedindo algo que não é realmente desejado de coração, sua prece pode não ser atendida. Ademais, é importante destacar que a prece pode ter um impacto diferente em diferentes momentos da vida de uma pessoa. Algumas preces podem ser atendidas rapidamente, enquanto outras podem levar mais tempo. Algumas preces podem ser atendidas de maneira literal, enquanto outras podem ser atendidas de maneira simbólica ou metafórica.


Por outro lado, também seria possível apontar para a ineficácia da prece, afirmando que é apenas uma forma de enganar a si mesmo e fugir da realidade. Segundo essa perspectiva, pedir algo sem agir para alcançá-lo é inútil e não irá levar a qualquer resultado positivo. O argumento poderia indicar também que a oração não tem poder algum para mudar o curso das coisas, e que o único caminho para obter sucesso é agir de forma concreta e determinada. Eles afirmam que aqueles que acreditam na prece ainda não aprenderam que pedir é o mesmo que ter o pedido negado, já que não há nenhuma garantia de que suas orações serão atendidas. Outra crítica possível é a de que a prece pode ser interpretada como uma falta de responsabilidade, já que delega ao universo ou a uma divindade a solução de problemas que são de responsabilidade do próprio indivíduo. Além disso, há a questão da justiça divina, já que, se a prece é efetiva, por que algumas pessoas são atendidas e outras não?


Mas o que significaria considerar que pedir é o mesmo que ter o pedido negado? O que seria esse pedido senão uma intenção desprovida da pureza necessária para sua realização, ou ainda, uma vontade desprovida do afastamento necessário deste ego frustrado e fraco. A ideia de um Eu insuficiente vai produzir uma vontade também insuficiente, que só atua no sentido da concepção quando esta é direcionada contra si mesmo. A dinâmica pode se instaurar da seguinte forma; Quando alguém pede em oração que algo lhe seja atendido, direciona toda a força intencional de seu desejo para uma suposta vontade exterior a si, que passa a se tornar responsável pela possibilidade de realização de seus desejos. Pedir a um Deus todo poderoso, exterior a mim, que realize em meu nome aquilo que não sou capaz de fazer, pois sou uma criatura frágil e decrépita. Eis a fórmula perfeita para a exaustão de toda e qualquer possibilidade mágica, a intenção aqui não será carregada na superação deste Eu mortal como realização mágica, mas na estagnação de si como identidade, e mais ainda, uma identificação absoluta com este Eu sobre o qual se depositam as projeções negativas das fraquezas, pois as virtudes são todas naturais apenas neste Deus que me é exterior. No entanto, este indivíduo ainda é capaz de performar algum tipo de concepção, pois a compreensão de si mesmo como um indivíduo fraco e incapaz tem um impacto negativo na vida deste indivíduo.


Ao se afastar da virtude, ele se aproxima de todas as fraquezas que acredita possuir. Essa concepção, apesar de parecer inofensiva, é prejudicial e enfraquecedora, retirando as positividades e as possibilidades mágicas da vida. Ao ter uma visão distorcida de si mesmo, o indivíduo limita seu potencial e sua capacidade de realizar coisas boas. A falta de confiança e autoestima acaba impedindo-o de alcançar seus objetivos e de se sentir bem consigo mesma. A partir disso há uma concepção, no entanto, é uma concepção danosa, que acaba por exaurir positividades mágicas do horizonte desta concepção. Bem, também não se trata de afirmar que Spare esteja excluindo a prece dá conta das atividade úteis, mas apenas que o seu uso precise ser considerado.


Uma das características muito evidentes que envolvem o aspecto revolucionário de sua obra, e que já podem ser evidenciados neste início do texto, é a ressignificação de muitos elementos e práticas que o horizonte das relações humanas e das concepções mentais já contemplam, e isso parece indicar um tese de fundo, uma sutileza que já deixa sua marca desde o início da introdução destes primeiros elementos críticos.


"Ah, tu, que estás vivendo a vida de outras pessoas! A menos que o desejo seja subconsciente, ele não é realizado - não mesmo, não nesta vida." LDP (212)


A ideia de que o desejo comum está atrelado a angústia e a fraqueza humana, parece determinar a tônica desta mudança de inclinação que está sendo proposta por ele na obra. A ideia aqui parece indicar que este desejo, ou é um desejo escravizado, ou será um desejo escravizador. No entanto, embora seja possível assumir um desejo escravizador como uma parcela ativa que impõe sua intenção a outros, será importante também notar a independência que tal desejo possui mesmo quando consideramos o seu primeiro autor. E digo isso, pois não é possível considerar que, nem mesmo o indivíduo responsável por formular um desejo escravizador de outras pessoas, seja ela mesma livre da influência nociva deste desejo. Em outras palavras, esta modalidade de desejo, tenha ela sua forma ativa ou passiva, será um instrumento escravizador de vontades. Neste sentido,a passagem indicada por Spare tem seu sentido reforçado, pois todos os indivíduos estarão vivendo os desejos alheios. A única forma de escape para essa armadilha está em uma superação deste nível de desejo, já que nenhum desejo conscientemente elaborado poderá fornecer adequadamente a satisfação almejada, pelo menos não um desejo que permaneça apenas neste nível da consciência.


Também é importante mencionar algumas palavras sobre consciência, que pode aqui ser entendida de duas formas distintas, ou, ao menos, tomadas a partir de certo escalonamento. Isso significa dizer que aquilo que nomeamos como consciência, embora possa ser evocado a partir de muitas definições distintas, obedece certa formalização que pode gerar ambiguidades no uso do termo. Por exemplo, o que estamos analisando aqui contrapõe dois usos do termo consciência; o primeiro deles vai focar mais incisivamente na percepção direta, e por que não, sensível, da vida cotidiana. São aquilo que podemos chamar de desejos objetivos, que circundam os aspectos da vida cotidiana. Tais desejos podem ser chamados de conscientes, se considerarmos que a consciência seja uma certa participação deste "Eu" no desejo, ainda que apenas como assentimento na realização destes. A crítica de Spare vai diretamente sobre isso. Para ele, este nível de desejo não poderia ser chamado de consciência, exatamente por sua característica escravizadora, que se desvia de uma ação efetiva da consciência. Um indivíduo escravizado por falsas compreensões de desejo ou ainda por uma fraqueza inerente de sua própria vontade, se encontra muito distante de ser um indivíduo consciente. Isso me parece já ser suficiente para indicar o segundo uso do termo consciência. Trata-se agora, de considerar que a consciência, em seu sentido mais verdadeiro, estará atrelada a esta apreensão superior, estado este que não é outra coisa senão o amor-de-si, responsável pela supressão da primeira forma de desejo, sendo também responsável por conduzir um indivíduo a um uso pleno disso que estamos aqui chamando de consciência.


"Determinemos a base da discussão: a "verdade" não pode ser dividida. Somente o amor-de-si não pode ser negado, e permanece amor-de-si quando paradoxal e sob quaisquer condições - por si só é verdade, completo, sem nenhum acessório." LDP (213)


Algumas coisas precisam ser ditas aqui sobre o amor de si. Mais adiante na obra, Spare explora este conceito de maneira mais profunda. Já podemos adiantar que a verdade e o amor de si estão relacionados à "morte do desejo". Até agora, argumentos sugerem que o fracasso na realização do amor de si é causado pela posição individual do desejo que interfere na fluidez natural necessária para este estado perfeito. É comparável a uma condição ativa impedida de se desenvolver. Alguém que direciona suas paixões para um objeto específico, limita seu desejo e é condenado ao fracasso total, abdicando da condição ativa e da escolha. Ao renunciar a essa possibilidade, torna-se um sujeito passivo e incapaz de expressar o amor de si. Por isso dizer, por exemplo, que a verdade não pode ser dividida. Afinal, a consequência do estabelecimento da verdade não pode gerar dissidência, ou mesmo alguma forma de bifurcação daquilo que foi concebido em outras direções. Importante indicar isso, pois a verdade determina a radicalidade sobre a qual, muitas vezes, a vida cotidiana não está habituada. Digo isso, porque ao conceber uma noção de verdade, é necessário que exista certo acompanhamento lógico, no qual uma tal concepção possa ser amparada sem receber quaisquer formas ou tentativas de torná-la ambígua ou contingente. Neste sentido, o texto indica que a situação do amor-de-si se revela como o único candidato amparado por condições plenas para expressar este estatuto da verdade. É importante que se considere isso, pois a posse da verdade é a eliminação, em termos lógicos, de toda a contingência e acidentalidade em relação ao que está sendo analisado. O amor-de-si, como observamos a sua concepção Spare, revela-se como uma condição que pode estar diretamente associada ao estatuto ontológico de verdade, uma vez que este estado tenha como direcionamento o abandono das próprias acidentalidades, gerando um estado radical de quietude, mesmo que paradoxal. Afinal, não seria a própria verdade o grande paradoxo?


Interessante também observar que, a sentença "a magia nada mais é que habilidade natural de atrair sem pedir", parece estar buscando uma relação de implicação direta entre a realização mágica individual e a plenitude de uma natureza humana. Na insistente crítica de seu contexto, Spare também parece estar indicando a crítica de certa perversão dos costumes, ou ainda, a crítica dos próprios costumes como elementos fundantes e condutores desta relação de enfraquecimento natural. A realização mágica, nesse sentido, parece estar teleologicamente orientada para a conquista de um estatuto de naturalidade. A muito deste debate na história do pensamento, muitos autores, desde os platônicos, estóicos, até o próprio Nietzsche, vão reivindicar a realização de uma natureza humana como horizonte investigativo da humanidade. A postura crítica compartilhada por essas escolas, postura que parece ser compartilhada por Spare, será o fio condutor para o estabelecimento de uma moral reguladora dos processos Intelectuais, volitivos, ascéticos, místicos, niilistas, seja lá qual for o nome que será dado a isso. A questão é que sempre será necessário conectar o estatuto daquilo que é verdadeiro a uma condição de verdade a ser encontrada. No caso de Spare, esta condição parece estar atrelada ao que ele chama de amor-de-si, O estado no qual o indivíduo estaria capacitado a acessar, por meio de uma situação conquistada a partir do controle e da posse de si, abandonando uma condição enfraquecedora, de um mundo partilhado no qual a expressão humana é a própria expressão da fraqueza, orientada por uma miscelânea de desejos/ausências, desesperadoras e inalcançáveis. A meta que parece estar diretamente relacionada a superação dessa condição na qual se encontra, Tal superação seria a condição de verdade a ser encontrada.


"A magia nada mais é que a habilidade natural de atrair sem pedir; cerimônia genuína, sem afetação, cuja doutrina é a negação da deles." LDP (213)


Continua…


SuiralucivalcodoM





Obs: Todas as citações do "Livro do Prazer" foram extraídas da Edição em português, publicada pela editora Palimpsestos(2021).



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