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Há regras para o caos?

Atualizado: 23 de mar. de 2021

Dholcey.


Oi pessoal,


Tenho escrito algumas coisas sobre minhas leituras, e escrevi um breve ensaio sobre alguns temas que me intrigam mais diretamente. Gostaria de compartilhá-lo com vocês.

Espero que apreciem a leitura, e que ela lhes seja útil de algum modo.



Há regras para o caos?


Qualquer busca superficial feita no google já revela que a magia do caos é algo bem maior e complexo que as receitas prontas superficialmente acessadas pelo senso comum apressado em resultados. E as tentativas mais apressadas de definição também variam entre "magia sem regras'’; "cerimonial flexível e bastante eletivo"; "possibilidade de escolha, e mesmo criação de seus próprios deuses". Esta última, provavelmente a mais sedutora de todas.

Sim, a resposta para todas estas breves definições é sim. Tudo isso é possível na MDC. O que também não é uma novidade para a maior parte dos iniciados, que muito rapidamente conseguem perceber o alcance e as consequências de tal liberdade que, embora seja bastante cativante, é também a grande fonte de dificuldades. Tornar-se livre é também responsabilizar-se por uma rotina de práticas que visam capacitar o praticante a ter controle sobre isso. É muito comum que se confunda certo "anarquismo metodológico" (o que vale é o que funciona), com um completo relativismo. Em outras palavras, há alguma confusão entre a espontaneidade que cerca a MDC com a prática aleatória de "fórmulas mágicas de ocasião". Muita gente sequer imagina que a MDC demanda preparação e treino para funcionar razoavelmente bem.


Tais questionamentos, no entanto, apenas resvalam na questão que tento rascunhar aqui. No impulso de compreender as dinâmicas mais essenciais relacionadas a MDC me deparei, a partir de obra de Petter Carrol, com todo um conjunto de formas (e fórmulas) que apontam possibilidades objetivas de orientar a manifestação do Kia pelo magista, processo que conhecemos vulgarmente com o nome de magia. A liberdade de tais práticas, no entanto, me deixou muito intrigado em relação a qualquer possibilidade de estabelecimento de um grupo de regras (sim, isso existe!), que podem dar suporte estrutural para o alcance da tão buscada liberdade que se segue nas práticas da MDC. É comum encontrar por aí afirmações de que a MDC é magia sem regras, mas qual é a regra que garante isso (sim, gostamos de paradoxos!!)? É possível dizer que a magia do caos levantou a cortina das práticas mágicas, revelando o que pode ser tratado como aspecto essencial da prática mágica, e o que pode ser descartado sem qualquer prejuízo. Apontar o horizonte comum, substrato compartilhado por toda e qualquer prática, indicou a tônica fundamental e regra primeira: "Nada é verdadeiro, tudo é permitido." No entanto, parece haver ainda outra cortina (ou cortinas) a serem erguidas, pois é sempre necessário perguntar: O que é isto que permite tudo? Há uma regra oculta para isso? Há um limite para a liberdade? A resposta para isso parece estar pautada em um ponto que considero axiomático na MDC, a dualidade. Cito:


A dualidade descreve a condição normal da humanidade. A felicidade existe apenas por causa da miséria, a dor por causa do conforto, o bem por causa do mal, o yang por causa do yin, o preto por causa do branco, o nascimento por causa da morte, e a existência por causa da inexistência. (CARROLL, P. - LIBER LUX)


Consequência inerente a existência de todo e qualquer ser que não seja o próprio caos primordial, a dualidade é a grande responsável pela imposição de limites e regras a toda manifestação do Kia na existência. Ao impor o jogo da composição, atrela os existentes às oposições definicionais, grande e pequeno, alto e baixo, vida e morte, luz e sombra, contingência, individualidade e diferença, todas estas marcas delimitadoras existenciais impostas pela dualidade. Todos os fenômenos precisam ser pareados, pois os sentidos só estão equipados para identificar diferenças. A mente pensante tem a propriedade de dividir tudo que encontra em dois, pois ela mesma é uma coisa dualista. (CARROL, P. - LIBER LUX)


Neste sentido, é possível considerar a existência de um ponto fixo anterior que possa sustentar a premissa do "tudo é permitido", Um ponto fixo, uma regra (ou conjunto) que seja capaz de permanecer inalterável, mas cuja função seja a de libertar toda a expressão possível na MDC, já que a própria mente é caracterizada como dualidade. Uma expressão de Peter Carrol no Liber Kaos parece resumir muito bem o que estamos tratando aqui, indicando que está em jogo indicar uma espécie de "engenharia mágica" responsável por sustentar de pé todo o edifício caótico. A busca por um princípio regente não se torna muito distinta daquela pelos fundamentos teóricos elementares, marcos regentes da possibilidade de se atribuir cientificidade a algum objeto conceitual em questão. Diversas obras de P. Carroll possuem capítulos ou seções inteiras voltadas a estes temas e adjacentes. Embora ele mesmo aponta que tais questões não são exatamente essenciais ao sucesso do magista, há duas vantagens a se considerar:


A compreensão dos Principia Magica não é um pré-requisito para realizar a magia prática em outras seções deste livro. No entanto, um paradigma teórico tem dois valores em qualquer sistema. Sugere possibilidades a serem exploradas e implica em limitações a serem investigadas e, talvez, transcendidas. Em suma, oferece uma maneira de organizar a maneira como pensamos sobre o que estamos fazendo na prática. (CARROLL, P. - Liber Kaos) tradução nossa.


Em outros termos, também parece ser fundamental recorrer ao seguinte pensamento. Digamos: Se "tudo é permitido", é possível existir alguma regra que acolha essa premissa sem impedir que ela mesma permaneça sendo verdadeira? Em termos mais simples, o que pode garantir que "tudo seja permitido"?

A consideração de fundo que parece pautar a dinâmica aqui proposta está oculta na própria formulação, pois talvez o problema seja o de redirecionar a pergunta para um ponto que seja mais essencial do que aquele que aparentemente a premissa indica. Talvez o correto não seja perguntar "Quem garante que tudo seja permitido?", mas sim "Onde tudo é permitido?"


Agora, este universo tem a propriedade peculiarmente acomodadora de fornecer evidências e confirmação para qualquer paradigma em que alguém escolha acreditar. Presumivelmente, em algum nível profundo, há uma simetria oculta entre aquelas coisas que chamamos de Matéria, Éter e Espírito. (CARROLL, P. - Liber Kaos) tradução nossa.


O entrelaçamento entre o "tudo é permitido" e o "Tudo que acontece no universo é mágico" parece conter a possibilidade de compreensão da liberdade que é inerente à prática mágica. Imediatamente, o postulado de tal premissa (a segunda) indica a necessidade de que se considere qual será a caracterização de magia que se pretende enunciar como base para tal afirmação. Neste caso, o papel da magia na constituição do cosmo é o que parece determinar, por assim dizer, a força da afirmação "tudo é permitido", agora em associação ao "tudo se faz por magia".

Você deve estar pensando, esse cara está louco. Sim, provavelmente (rsrs). Mas, considerando que tudo seja permitido, a realidade da magia só pode aderir adequadamente à primeira premissa (tudo é permitido), se a segunda (tudo é mágico) também for aceita. Por que estou dizendo isso? Se a realidade do universo tivesse outras regras fundamentais que não permitissem a existência da magia como parte fundamental, seríamos obrigados a dizer que "nem tudo é permitido", pois nem tudo seria feito de magia. E mesmo que - "tudo fosse permitido" - em um universo que não é regido basicamente pela magia, tal permissão viria de outra fonte que não a própria origem mágica, o que é um contrasenso, equivale a dizer que existem dois substratos fundamentais do universo, algo como dizer que existem dois caos primordiais, rivais entre si. Levar essa posição ao absurdo elevaria ainda mais a complexidade do argumento, multiplicando a necessidade de causas primordiais ao infinito, mas isso é conversa suficiente para outro texto.


Uma parcela significativa do aspecto crítico do pensamento de Peter Carroll parece ter relação com o desenvolvimento de tais formulações, apontando como a magia participa intrinsecamente dos paradigmas essenciais da realidade, analisando as justificativas para o sucesso das práticas, e, sobretudo, para os fracassos. Por que é bem interessante notar como essas supostas regras são mais visíveis na ocasião das falhas. Você pode estar se perguntando agora, "se tudo é magia, porque meus feitiços não funcionam sempre?" Ou então, "Por quê tenho dificuldades em cumprir as práticas mágicas?" O caráter intrínseco da magia poderia indicar certa naturalidade em realizar todos os procedimentos, o que sabemos que não é assim tão fácil. Deveria ser tão fácil quanto é para o peixe respirar na água, ou como é para um pássaro voar, ou para o seu vizinho tocar violão desafinado. No entanto, o peixe não toca violão, o pássaro não respira debaixo d'água, e nem o seu vizinho voa. E a resposta para isso é a dualidade.


Para que a magia seja intrinsecamente atribuída aos movimentos fundamentais do universo, também é necessário, neste caso, considerar alto grau de ocasionalismo em tudo o que existe, que nada mais é do que a espontaneidade criadora do caos, que permite que tudo seja possível muito além do que pode estar contido na lógica da relação de causa e efeito. Os eventos surgem espontaneamente de si mesmos ou são encorajados a seguir certos caminhos por influência de padrões no éter. (CARROLL, P. - Liber Kaos) tradução nossa.


Lembre-se "nada é verdadeiro" também pode significar que a relação de causa e efeito está suspensa. Normalmente, a relação de causalidade é utilizada como critério de verdade para justificar algo, pois a causalidade situa o objeto em questão, informando sua origem (a causa que lhe deu origem), o que ele faz por natureza (sua atuação como efeito), e o que sua ação provoca (sua atuação como causa de um novo efeito). Dizer que "nada é verdadeiro" é também suspender a relação de causa e efeito, não em sua validade, mas sim como causalidade fundamental e determinante. A causalidade parece continuar ocupando algum espaço de valor nas obras de Peter Carroll, embora pequeno e estritamente relacionado ao espaço da dualidade, que introduz o fator calculativo potencial a partir do éter.


"Assim, todas as coisas acontecem por mágica; as características em grande escala do universo têm um padrão etérico muito forte que as torna razoavelmente previsíveis, mas difíceis de serem influenciadas pelos elementos etéricos criados pelo pensamento. (CARROLL, P. - Liber Kaos) Tradução nossa


Neste caso, também é necessário considerar a interferência da dualidade como movimento formalizador, introduzindo contrariedade e determinação em tudo o que existe. Ou seja, a determinação formal introduzida pela dualidade na existência é o que faz com que a probabilidade de um peixe voar seja extremamente baixa, enquanto isso seja extremamente provável no caso dos pássaros, e que nada disso seja impossível (sabe aquele 0,01 % que parece impossível de acontecer, mas que acontece e ferra sua vida? É disso que estou falando, rsrs.). Uma possível forma de erro aqui consiste em considerar que tais probabilidades sejam tomadas como regras cristalizadoras e determinantes essenciais da realidade, intransponíveis, recuaremos a uma posição materialista de universo, que reduz tudo aos fenômenos materiais e esclarece tudo por meio de suas interações. No entanto, considerando o paradigma mágico, um valor de probabilidade representa apenas certa mensura no Kia que se manifesta espontaneamente pelo caos.


Entre o Caos e a matéria ordinária, e entre o Kia e a mente, há um reino de substância meio formada chamado de Éter. Trata-se de uma matéria dualista, mas de natureza muito tênue e probabilística. Ele consiste de todas as possibilidades lançadas pelo Caos que ainda não se tornaram realidade sólidas. É o "meio" através do qual o caos "inexistente" se traduz em efeitos "reais". ( CARROL, P - Liber LUX)


O que estou dizendo? Digo que a magia, enquanto definida por Peter Carrol, encontra aí seu ponto de atuação no incomensurável espaço metafísico existente nas possibilidades relativas ao que se pode entender como uma espécie de constante de manifestação. Isso nada mais é do que o éter (citar peter carroll), ou ainda, o espaço potencial que separa o caos de sua manifestação na matéria comum. O que é magia? Pode ser entendida como a aplicação da forma concebida pelo pensamento, energizada pelo Kia, que consegue, de alguma forma (mais ou menos efetiva), produzir um efeito numérico formal no éter potencial, guiando, influenciando, direcionando uma ocorrência aleatória. Em outras palavras, fazendo algo passar da potência ao ato por meio da atuação da vontade e do pensamento.


A partir do plano etéreo de possibilidades nascentes, somente eventos que chamamos de sensíveis, causais, prováveis ou normais geralmente passam a existir. No entanto, na condição de centros de Kia ou Caos, nós podemos às vezes trazer à existência coincidências altamente improváveis ou eventos inesperados, através da manipulação do éter. Isso é magia. ( CARROL, P - Liber LUX)


A partir disso, nada precisa "ser verdadeiro" e "tudo é permitido". A centralidade da MDC se coloca, portanto, no magista, em sua capacidade de influenciar o éter que o circula, podendo este primeiro reduzir-se a nada, ou tornar-se, ele mesmo, um deus.

Enfim, é possível considerar a premissa de que o único conjunto de determinações possíveis na MDC esteja vinculado ao grupo de características cósmicas que apontam o caráter mágico da constituição lógica (ou não-lógica) do universo. Tudo é mágico. Tal assertiva, bem como a possibilidade de "tocar" o éter a partir da influência que pode ser exercida pelo Kia parecem indicar a liberdade como horizonte de uma existência que, embora determinada em certa medida pela dualidade, pode ser livremente reorganizada pelo magista.


Assim, a premissa "nada é verdadeiro, tudo é permitido" permanece como a principal constante da qual derivam todas as demais possibilidades da MDC.


Fim.


Choyofaque!


M:.W:.


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